quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Nouvelle Vague das Nove da Noite

Nada tem sentido. Se eu fosse Truffaut ou Godard nos idos de 59, 60, seria esta minha frase de abertura, em "off", numa tarde que nevasse, glorificando a cinematografia preto-e-branca. Paris que neva em 60. Eu então tusso e não há nada de regular nisto. Há algo em mim que quer morrer, só isso. Eu compreendo os desejos do meu corpo.

Eu não gosto de sair porque eu odeio gente. Odeio os narigões inquiridores, os risos hermeticamente debochados e aqueles olhos tão mercuriosamente vivazes! Porque dois olhos numa cara? E eu agradeço a invenção dos óculos escuros, minha salvação moral e pessoal. Ah, tudo escuro é tão mais bonito! A vida deveria ser um film-noir do Bogart com roteiro do Frank Capra. E assim estaria salva a humanidade! Pronto, tossi novamente.

Outro dia entrou um bicho estranho no meu quarto e eu não o matei. Tá, eu quis matar e quase o fiz até me dar conta da minha Crueldade majestosa perante o inocente bichinho. E então eu soube que eu era o mais detestável dos humanos da terra! Nem humano era, na verdade. Era uma espécie de Hitler dos insetos, usando o chinelo como câmara de gás. Que horror! E as lágrimas ameaçavam brotar, como em final de filme do Douglas Sirk. Eu, em minha compaixão absoluta, empurrava bruscamente o bichinho com a ponta do chinelo para fora do quarto, sala, cozinha e enfim para a rua. O processo foi lento dado o fato de que eu não queria causar danos à estrutura física do coitadinho, tampouco matá-lo acidentalmente, como também não queria, de modo algum, sentí-lo em minha epiderme. Deste modo, o pequenino inseto foi encaminhado, aparentemente com vida, para o corredor chuvoso. Não me preocupei em certificar-me se o bichinho havia encontrado sua família - teria ele uma família? - ou se sobreviveria o frio da noite chuvosa. Teria ele morrido? Eu haveria prolongado seu sofrimento? Como eu haveria de viver com este fardo? O bichinho e eu somos um, unos em solidão. E lá vem mais uma tossida.

Eu acho que não tenho nada de importante a dizer. Pra quê registrar tudo isso? É tudo besteira, é tudo inútil, tudo é lixo lixo lixo, as folhas amassadas e rasgadas, o salário do mês e as estrelas milenares. Eu quero um "jump cut" que me leve do nascimento à morte sem o aborrecimento de viver. Será que eu sou "nouvelle vague"?

sábado, 25 de julho de 2009

Ele Só Queria Dormir

"What moves me so deeply about this sleeping prince, is his loyalty to a flower. The image of a rose that shines through his whole being like the flame of a lamp, even when he is asleep. And I realized he was even more fragile than I had thought. Lamps must be protected. A gust of wind can blow them out."

The Little Prince
, Antoine de Saint-Expurey



O chanchadeiro Luis de Barros, pra lá de 57, seria meu último suspiro cinematográfico até o culminante momento. Naquela sessão, eu ainda não pensaria "No ano deste filme ele gravou tal disco" ou "Quando esse filme saiu ele casou" ou, no caso do Luis, "Ele só nasceria no ano seguinte". Eu não pensei porque era manhã em Santos e madrugada em Los Angeles e eu não sabia. O turning point no roteiro bergmaniano na vida de tantos incontáveis e inconsoláveis. E eu que tanto gostava do número 25, anotado com a convicção dos workaholics nos deveres diários daquele caderno de rotina, idealista até às margens e agora jogado nem sei mais onde - você é parte do passado, você é pré-25 de junho, dear! Tão petulante este caderninho que, aliás, tinha ele na capa. Quantos minutos do meu dia 25 de junho programados sabidamente naquele caderninho. Depois dele, páginas em branco. Tantas e tantas páginas em branco. Alguns esboços de tentativas na restauração da ordem suprema que o caderninho tem e deve exercer na vida do indivíduo prolífico e respeitável. Todos em vão. Há a clara certeza de que tudo foi perdido, para sempre. Worthless, diria o libertador Brick/Newman do meu amado Gata em Teto de Zinco Quente.

Worthless, Brick! Que saudades de Brick Pollitt! Brick bebe porque Skipper morreu. Liz Taylor, de vestido branco e gritando quase sempre, desaprova seu comportamento. Estranhas conexões! Ele bebia, enfim, porque não entendia de nada como eu também não entendo de nada, o que nunca foi tão claro como agora. É claro e irreversível porque é consciente, por isso, pungente. Nada será como antes, jamais, Brick e eu sabemos disto. Peter se foi para sempre, na estrela mais brilhante do céu, e eu só queria que ele fosse feliz. Eu só queria ver seu sorriso e poder agradecer - o que nunca consegui - pela lição que levarei por tudo o que resta da minha vida. Mas eu ao menos estive lá por ele, sempre, in his darkest hour, in his deepest despair, contra deus e o diabo na terra do sol se fosse preciso. E agora, longe de mim as carpideiras da TV e da vida, que choram sob o corpo ainda não enterrado de Mikey e sua avalanche - ou seria um tsunami? - de homenagens hipócritas a ele que, com o deleite dos pontinhos do ibope, ajudaram a matar! Me faz querer vomitar esse frenesi absurdo de querer santificar um homem que sempre foi santo, essa celebração histérica e covarde do triunfo da morte não-voluntária de Michael, a morte que lhe foi infligida em enorme escala pelos abutres que hoje travestem a bandeira da misericórdia querendo "humanizar" um ser mitológico que sempre foi e sempre será mais humano do que todos eles juntos!

Só mais torpe do que isso, ou no mesmo patamar, é quem te conhece e age como se Michael Jackson fosse só o cara que, eventualmente, enfeitava a decoração do mês na parede do seu quarto ou o popstar que fazia volume de megabytes no seu mp3. Ainda estou a pensar no merecedor do prêmio supremo da indiferença: o silêncio velado ou aquela pessoa que está com o "get over it, já passou UM dia!" na ponta da língua, mas nem precisa falar porque todo o tom do discurso está envolto nela, a frase proibida para ser expulso sem perdão do círculo interno de Bruno Vilângelo, porque essa gente sabe como ele é um esquentadinho encrenqueiro, né? Ah, uma criança esse menino, tão sem motivo, agindo como se tivesse perdido um parente! Mas tudo isso é bom, a querer ou não, porque é da verdade que eu gosto, que eu enfrento, como bem ensinou esse cara que enfeita a parede do meu quarto, venha a base de propofol e manslaughter ou não.

Eu, que nunca sequer sonhei com este dia ou que um dia iria debater sobre propofol, seus efeitos e suas práticas ilegais. Tudo isso acabou me remontando ao período pré-julgamento quando eu, transitando para a adolescência, tinha a companhia noturna quase semanal do Espantalho Michael Jackson de The Wiz. Era quase impossível passar dos primeiros créditos sem que as lágrimas brotassem, e assistir a ele depois, durante o julgamento, era como cravar sem piedade uma faca pelo coração. Eu me perguntava se aquele Michael Jackson vivaz, cujos olhos brilhavam e cujo espírito vibrante iluminava a tela, aos 19 anos, saberia o que o futuro lhe aguardava. Eu me perguntava o porquê de tanto desamor e de tanta injustiça. A morte de Michael Jackson só me trouxe uma conclusão: a de que, neste mundo, não existe justiça. Se existe uma outra vida e Michael agora elevou-se a ele, então ele está vingado, porque este mundo não o merecia. Se não, estamos condenados ao vazio da existência destituída de qualquer significado, sem caráter e sem moral, onde os homens justos e puros são levados às raias do propofol para poderem dormir em paz, para poderem sufocar as súplicas não atendidas por misericórdia humana, misericórdia por quem sangra e apanha por sangrar, por quem ama e apanha por amar.

Desde então, está difícil de sorrir, embora o coração esteja quebrado, como diria a canção favorita dele. Nós, que nem pudemos nos despedir. Mas uma imagem invertida vem se fixando na minha cabeça. É a parte final de The Wiz, onde Dorothy-Diana se despede dos amigos. A canção Believe In Yourself parece uma composição do Rei: "Believe in yourself/Right from the start/You have brains/You have a heart/You have courage to last your whole life through/If you believe in yourself/As I believe in you". O mágico falsário fica em lágrimas ao comover-se com a bondade e o amor de Dorothy, coisas que ele nunca conheceu. Ela lhe diz que os amigos, Leão, Espantalho e Homem-de-Lata, sempre tiveram em si mesmos o que procuravam. Ele, o falsário, teria de mudar deixando as pessoas verem quem ele realmente era. Os amigos de Dorothy/Michael somos nós dando adeus. "Sucesso, fama e fortuna, são todas ilusões. Tudo o que é real é a amizade que dois podem dividir", dizemos, com a mensagem que aprendemos com Michael. "Eu sentirei saudades de você todos os dias, porque eu conheci o amor verdadeiro", dizemos para ele. "Se não fosse por fosse, eu ainda estaria escondido, com medo de viver", nós confessamos. Michael nos agradece por termos sido seus amigos, seu fiel exército do amor nos tempos de alegria e tristeza. Ele vira de costas, segue em frente, pára, mas vira o rosto para uma última mensagem: "I love you more", ele nos diz com um inconfundível último sorriso. "Eu estou pronto agora". Ele havia partido.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Eu Sei o Que Acabou

"And now I understand what you tried to say to me
How you suffered for your sanity
How you tried to set them free
They would not listen, they did not know how
Perhaps they'll listen now

For they could not love you
But still your love was true

And when no hope was left in sight on that starry
starry night
You went away
As lovers often go

But I could have told you, Michael
This world was never meant for one
As beautiful as you..."

“Vincent”, Don McLean (parafraseada)


Talvez as palavras de Tyrone Power ao descobrir seu câncer terminal em The Eddy Duchin Story fossem as que ecoassem com mais destreza em minha letargia. Por que destruir um homem duas vezes? Justo quando ele encontra... tudo o que queria! Quando fica bom demais, eles tiram tudo de você. Eu não quero morrer!

Ele estava morto. Me and Janet really are two different people. I love you more! You ain't seen nothin' yet. And every opportunity the media has dissected and manipulated these allegations to reach their own conclusion. You haven't been where I've been mentally. Tell her to go to hell. Tom Sneddon is a cold man. You wouldn't believe the amount of mail that I get! I'll kill you, Mac! Neverland is not a home anymore. With a child's heart nothing's gonna get me down. Sorry Joseph, please don't be mad at me! I'm starting with the man in the mirror. I don't sing it if I don't mean it. Morto! E não há modo de conceber uma idéia tão absurda, tão resolutamente improvável... o meu Michael morreu!

E quem não viveu esta história na pele, como eu vivi, nunca vai entender em essência o que significa a frase supracitada. Se é que se entende sem conhecimento de causa os 12 suicídios já registrados. Agora, o mundo se regozija na celebração hipócrita àquele que desumanizaram, que coisificaram à condição de ícone-piada mundial para suas gargalhadas malditas e desgraçadas. Agora, todo mundo chora, todo mundo canta e milhões de discos/downloads são vendidos em um raio de segundo. Agora, de repente, virou cool ser fã de Michael Jackson e lamentar a morte do “ídolo”. Engraçado, eu lembro quando, até duas semanas atrás, ser fã de Michael Jackson era motivo de piada... e há muito tempo! Eu lembro das gozações no primário que freqüentemente me levavam a diretoria; pior, eu lembro no colegial, quando fui "eleito" à condição de "celebridade" por ser o freak que gostava de Michael Jackson! Eu lembro da caça às bruxas da mídia durante o julgamento, das informações absurdamente distorcidas, dos telejornais inteiramente dedicados à promotoria. Eu lembro do presidente da CNN chamando o veredicto de "tedioso"; eu lembro do rosto de Michael ao entrar na Corte no último dia... eu lembro de como destruíram a moral de um homem inocente perante a opinião pública. Eu lembro de como destruíram o espírito de um homem e riram sobre isso.

Foi mais do que um médico inescrupuloso e desgraçado que te levou à morte, Michael. O mundo te matou. Sua morte começou no dia em que viram no seu talento uma mina de ouro - daquele dia em diante você deveria viver para brilhar e brilhar, não importando a que dor, a que perda custasse. Sua capacidade de amar, no entanto, sempre foi maior, sempre esteve acima da enorme dor de viver. O seu coração podia abrigar o mundo e salvar as crianças era a sua missão, como vemos nas historinhas que só nós, fãs que o acompanhamos, conhecemos. Das crianças com doenças terminais que você ajudou, das famílias vítimas da enchente na Europa que você convidou para morarem em Neverland, dos mais de 300 milhões de dólares que você doou para instituições de caridade sem nunca ter divulgado press release algum a respeito, como fazem a maioria das celebridades. Mas como a história prova, nenhuma grande alma vive em paz nesta Terra.

Igual ao seu coração, era sua enorme fidelidade ao próprio espírito, à sua concepção idealista de viver. Mas era tanto poder para um negro norte-americano, amado pelos quatro cantos do planeta, com sucesso após sucesso, recorde atrás de recorde, que a América racista começava a se enfurecer. Que ano foi 1993 para os tablóides! Quantas carreiras foram construídas em cima do seu sangue, em cima dos painkillers que você tomava para ser catapultado ao palco da Dangerous Tour. Que importa se foram gravadas as conversas que revelavam a extorsão a qual você foi vitimado? Que importa se um caso criminal foi concluído após dois grandes júris por falta de provas? Que importa se o tão falado acordo de 1993 foi revelado há anos e está na internet para qualquer João da vida baixar, afirmando que o mesmo foi realizado pela seguradora sob os seus protestos, por uma acusação de negligência e não abuso sexual? Que importa se em Money você canta "Insurance, where does your loyalty lies?", anos antes de tais documentos virem a público? Nada importa, Michael. Por toda a eternidade, as Vejas da vida, tablóides travestidos, vão publicar a mesma mentira patética para quem quiser vomitar desinformação adquirida na sala de espera do consultório médico e julgar-se erudito no assunto.

Se uma mentira é contada com muita frequência, as pessoas começam a acreditar. Você já pronunciava sua própria sina em 93, Michael. O quão sábio você foi em vida! Talvez você já soubesse como a história terminaria mas você não mudaria, porque sabia que uma vida sem coragem era igualmente sem valor. Ninguém vai me impedir de ser quem eu sou, tu disseste certa vez. Seria mera coincidência a frase que encerra o álbum Invincible? O que você acabou de presenciar poderia ser o fim de um pesadelo particularmente aterrorizante. Não é! É apenas o começo.

10 anos depois, o mesmo cenário se materializa. Um julgamento-piada para quem quer que tenha lido tudo o que importava no caso: as transcrições da Corte. Para a mídia, o espetáculo do século, para a América, a chance de finalmente enterrar Michael Jackson, o superstar negro e seu legado. Diane Dimond, Larry Feldman, Gavin Arvizo, Maureen Orth, Tom Sneddon, Tommy Mottola... ATV. A que importava a verdade ao mundo, não é mesmo, Gary Dunlap? Mais perversamente divertido era sentar no sofá de casa, vendo as "bizarrices" de Michael Jackson na TV e dar risada do pedófilo, como se houvesse alguma coisa de engraçado em pedofilia, suas vítimas e seus agressores.


O seu coração tinha de parar porque ninguém agüenta tanta injustiça, tanto desamor. Você se foi por cima do jogo, morreu como o guerreiro que sempre foi em vida. Deu ainda um tapa final na cara do mundo todo, dando um gostinho de retorno para deixar suas performances apenas na nossa memória. Bem feito. O mundo não te merecia.

Quem sabe agora o que se passa na cabeça e nos corações dos anjinhos Prince, Paris e Blanket, as verdadeiras vítimas de sua morte? Como entenderão eles que o papai não volta mais? Eu não sei o que eles pensarão do mundo fora da Neverland de amor que o pai criou para eles. Eu sinto imensamente por eles e por uma dor que é imensurável. Eu sei o que penso de um mundo sem Michael Jackson e não gosto nenhum pouco disso. Não tem muito sentido nisso. E eu, que era tão sabichão, achava que entendia Morrissey. Agora eu entendo. Agora, a cada minuto da minha vida, eu sinto o chão cair sobre a minha cabeça.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Porque Eu Entendo Werther

"Oh! Essa gente razoável! Paixão! Embriaguez! Loucura! E vocês se conservam tão calmos, tão indiferentes, vocês, os homens de moral! Esmurram o bêbado, repelem o louco, cheios de asco, e passam adiante, como o sacrificador, agradecendo a Deus, como o fariseu, por não haver feito vocês iguais a um desses desgraçados!... Tenho-me embriagado mais de uma vez, as minhas paixões roçaram sempre pela loucura, e disso não me arrependo, porque só assim cheguei a compreender, numa certa medida, a razão por que, em todos os tempos, sempre foram tratados como ébrios e como loucos os homens extraordinários que realizaram grandes coisas, as coisas que pareciam impossíveis... Mas, ainda na vida ordinária, nada mais intolerável do que a todo momento ouvir gritar, sempre que um homem pratica uma ação intrépida, nobre e imprevista: 'Esse homem está bêbado! É um louco!...' Que vergonha, ó todos vocês que vivem em jejum! Que vergonha, ó homens sensatos!"

Goethe, "Os Sofrimentos do Jovem Werther"

Será que me arrependo de tanta demência deliberada? Eu não sei, porque não consigo percrustar aquela antiga área de consciência, antes tão solícita aos enigmas da alma. Talvez me agrade mais esta mascarada que me permite rir de mim mesmo e ordenar-me, ridi pagliacci. Como as noites de quintas-feiras carregam o ar decadente nessas cidadezinhas litorâneas! O ar tão decadente a quem se prostrar a dar às caras em suas ruas, porque todo mundo que vive em cidadezinhas litorâneas tem, em toda e qualquer esquina, alguma memória para lembrar. Elas estão sempre lá, esperando o passo as alcançar para viverem novamente, mesmo na solidão da mente do único que a experimentou. Eu não lembrei nada porque estava imune e sou sempre forte enquanto acreditar que sou. Mas que poderia fazer quando tu, feito espectro, materializa-se perante meus olhos? Ao longe, não me vês. Eu vejo e eu lembro. E quem irá entender o que significa a uma alma maculada, lembrar? Que magnânima vontade de infligir aos perversores do espírito a mesma sina que nos condenam, nós que começamos com uma alma tão bonita! É tarde para tudo, menos para o vôo dos morcegos, para os passos frementes do andarilho. Tarde até para o perdão, que nunca poderia ser leviano ou de meio coração. Eu sei onde todos estão, nos quartos, nas janelas, não pensando em mim, como eu não deveria pensar neles. Que hei de fazer se vivi a noite de quinta-feira numa cidadezinha litorânea? Parece ter prolongado seu espírito, porque chove lá fora e eu ainda sinto tudo porque sou um expressionista. Este silêncio intolerável torna o brotar das lágrimas tão mais fácil, tão essencialmente fácil. Ridi Pagliacci, tal como Donald O' Connor. Mas eu não vivo em Technicolor. Voltemos a Werther.

domingo, 19 de abril de 2009

O primeiro "Hitchcock Picture" por excelência

"O seu filme é tão ruim que nós iremos apenas colocá-lo na estante e esquecer a respeito", dizia um produtor britânico em 1926 ao jovem diretor Alfred Hitchcock. Algumas cenas refeitas e, então, o "filme ruim" é lançado aos cinemas londrinos com grande fanfarra e louvação.

The Lodger: A Story Of The London Fog (O Inquilino ou O Pensionista em português) foi considerado pelo diretor como o primeiro "Hitchcock Picture" de verdade. "The Lodger foi o primeiro filme em que tirei proveito do que havia aprendido na Alemanha. Nesse filme, todo o meu enfoque foi de fato instintivo, foi a primeira vez que exerci meu próprio estilo. Na verdade, pode-se considerar que The Lodger é meu primeiro filme," disse Hitchcock a Truffaut.

De fato, Lodger distancia-se do estreante de Pleasure Garden e aproxima-se do gênio de Os 39 Degraus. O filme começa com um assassinato, à noite, de uma mocinha loira. Letreiros em neon anunciam um show de coristas - "Tonight: Golden Curls" e pela primeira vez assistimos a um tema recorrente da filmografia de Hitchcock, o que Donald Spoto caracterizou como atração psicológica na associação entre sexo e assassinato, êxtase e morte.

Além do próprio assassinato, Hitchcock preocupa-se em explorar a paranóia instalada pela sensacionalização do crime, com o uso de fusões de primeiros planos dos rostos chocados dos cidadãos. Algumas mocinhas chegam a esconder os cabelos loiros nos chapéus, disfarçando-os com o uso de cachinhos negros para não caírem vítimas do temido assassino! Após esta sequência, somos transportados a uma casa de pensão onde vivem um casal e sua filha Daisy, quando um homem estranho chega até a calma residência. Hitchcock o filma na porta, com a boca entrecoberta por um xale, ao fundo da neblina londrina; em seguida, outro plano acentua o tratamento sinistro dado a este personagem, quando ele é filmado de costas, grande e sombrio, comparado à docilidade da Sra. Bouting. O plano-detalhe assume timidamente o aspecto fundamental que terá na obra futura do diretor, quando Jonathan, o pensionista, demonstra preocupação com sua maleta. Estabelecida a convicção do espectador de Jonathan, em suas excentricidades (ele pede também que todos os quadros com fotos de moças loiras, que estavam em seu quarto, sejam retirados), ser o assassino procurado, curiosa se torna a cena em que ele, sentado à mesa, põe-se tranquilamente a ler o jornal, como se Hitchcock anteviesse o mesmo momento no grande A Sombra de Uma Dúvida, de 1943.

O assassino só ataca nas noites de terça-feira e, coincidentemente, nesta noite o pensionista resolve sair para um passeio. A Sra. Bouting, no entanto, acorda e o vê deixar a pensão. Hitchcock usa aqui das técnicas que afirma ter aprendido com os alemães, no uso do plongée no plano de Jonathan fechando a porta, e nas sombras da janela refletidas na parede do quarto da Sra. Bouting. Logo que o pensionista sai, outra jovem loira é atacada, rapidamente, como sugere a montagem que explora o susto da moça e das pessoas nos arredores. O assassino é exibido de costas, em passos rápidos, perdendo-se na escuridão das ruas. No dia seguinte, os Bouting descobrem sobre o novo ataque e perguntam-se se Jonathan não seria o responsável. Eles fazem tal questionamento e olham para o lustre da sala, um elemento sempre indicativo da presença suspeita e misteriosa de Jonathan no filme. Outro prenúncio do trabalho futuro de Hitchcock acontece na cena em que Jonathan tenta abrir a porta trancada do banheiro enquanto Daisy está na banheira. Inspiração para Psicose?

Quando a polícia, a investigar o caso, chega até a pensão dos Bouting, o quarto de Jonathan é revistado e sua preciosa maleta é aberta. Encontram um revólver e uma série de artigos relacionados aos assassinatos das jovens loiras. Jonathan vai ser levado preso, mas consegue fugir, algemado, e combina com Daisy de se encontrarem perto de um poste de luz. Lá, com o recurso do flashback, ele nos conta que sua irmã foi morta pelo misterioso assassino de loiras. Sua mãe então caiu enferma e faleceu, e ele lhe prometeu não descansar enquanto não encontrasse o assassino. Eles passam em um bar, cena utilizada por Hitchcock para caracterizar a estranheza na situação da moça dando-lhe de beber (Jonathan estava algemado), fazendo assim as pessoas no local indicarem-no como o procurado assassino quando a polícia chega procurando informações.

No drama desta sequência, Jonathan e Daisy são perseguidos por uma multidão enquanto, paralelamente, ainda no bar, um policial recebe uma ligação que revela a prisão do verdadeiro assassino. Preso em uma grade pelas suas algemas, Jonathan é atacado por uma multidão enfurecida até a chegada dos policiais. A salvo, somos convidados a presenciar o "happy ending" que o star system não poderia negar. Hitchcock, inicialmente, queria que Ivor Novello, ator que interpreta Jonathan, sumisse ao fim do filme deixando sua inocência ou culpa sem explicações. Mas Novello, grande astro, não podia ser considerado vilão por conta dos publicitários, e o final do filme teve de ser alterado. O que chegou às telas foi a cena de Jonathan e Daisy, felizes e casados em sua nova casa, recebendo os pais da moça para uma visita. Hitchcock estrutura bem a dinâmica dos pais de Daisy, personagens de caráter simples (há seu característico humor quando a Sra. Bouting dá a Jonathan sua escova de dente esquecida na pensão), com o casal. Embaraçados pelos carinhos dos noivos, eles o deixam a sós. No plano final, Jonathan e Daisy se entregam em um grande beijo em frente à janela. Ao fundo, vemos a placa em neon, piscando, anunciando "Tonight: Golden Curls". O mistério resolvido e a vida que prossegue.

Lodger tornou Hitchcock uma espécie de celebridade instantânea na Londres dos anos 20, no que consideraram ser o primeiro filme em que o nome do diretor foi mais aclamado do que o de suas estrelas. Enquanto obra cinematográfica, seja na temática de grande parte dos seus filmes - o homem inocente perseguido injustamente -, no sinistro das imagens sombrias, na fuga ao humor, sua dinâmica confirma as palavras do diretor: trata-se essencialmente da primeira obra hitchcockiana por excelência. Hitchcock beneficia-se do momento do cinema mudo para fazer o que melhor sabe: contar imageticamente, como no futuro o faria suprimindo diálogos, aqui o faz na redução dos intertítulos, como o fez Murnau – que declaradamente o influenciou –, àquela época, em A Última Gargalhada.

domingo, 12 de abril de 2009

O Passeio

"Até pensei que era mais
Por não saber que ainda sou capaz
De acreditar
Me sinto tão só
E dizem que a solidão até que me cai bem

Às vezes faço planos
Às vezes quero ir
Pra algum país distante
Voltar a ser feliz..."

Legião Urbana, "Maurício"

Ontem de noite eu andava e ouvi os meus passos. Então percebi que eu era eu e somente eu e que também estava sozinho. Era tarde e eu não sabia o que se faz quando se descobre que se está sozinho, então parei, olhei para os lados e me escondi perto de uma árvore numa dessas rua desertas, porque pior que estar sozinho é deixar que os outros saibam disto. Eles sempre sabem e eu escondo o horror de tudo isso, eu uso luvas, eu uso capa, chapéu, eu me transmuto no Homem Invisível para que deixem em paz minha solidão secreta que não é secreta e, enfim, o tempo passa. Outro dia vi umas crianças na saída do colégio, correndo para a banca de jornais para comprar as novas figurinhas, com as moedinhas do lanche que esconderam pela semana. E eu sabia disso e sorri pra mim mesmo, não esbocei sorriso porque não esboço sorriso pelas ruas, seja lá porquê motivo, mas sorri por dentro em simpatia, apesar de nem as figurinhas, nem as revistinhas, nem os papos, nem o jogo de bafo, nem os desenhos e nem as músicas sejam as mesmas dos meus tempos de guardar moedas para comprar figurinhas. E então, não tenho universo. Estou escondido atrás da árvore da rua que não sei o nome, deserta e a noite, diferente do meu espírito, é quente, e eu estalo os dedos pro tempo passar, porque tenho medo de voltar pra onde quer que seja e de ir pra qualquer outro lugar. Eu estalo os dedos e as imagens aparecem, porque é sempre assim, uma coisa leva a outra, uma imagem que leva a um pensamento que leva a uma lembrança que não se quer lembrar ou à lembrança forjada que tanto se quis e nunca existiu. E eu, de capa e chapéu, levanto e de repente fica tudo tão bonito e eu quero correr pra ti e te abraçar como nunca antes, dizer que te amo e que nunca quero ficar longe de ti, mas é tudo mentira e eu sinto o êxtase no nada, no pó da rua deserta onde estou perto da árvore, sozinho. Eu olho as janelas dos apartamentos ao redor e todos estão ocupados com suas pizzas de fim de semana, seus filmes de fim de noite, suas contas que vão vencer. E eu grito: Vocês amam? Mas são covardes e não me respondem, não se dão conta, querem amar sua imagem de amor ao invés de amar o ato de amar. Eu cansado estou de não ser o que querem que eu seja. Eu não sei se sou o que quero ser e nem o que quero ser. Eu só queria uma fotografia de alguém que já me foi importante, que ela caísse do céu como uma milagre daquele que nunca se manifesta, queria guardá-la no meu casaco e deitar junto da árvore onde me escondi até que a vida de mim expirasse, mas eu não posso porque eu ainda estalo os dedos. Talvez eu ainda transe essa loucura.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

A Estréia de Um Gênio

No ano de The Big Parade, O Encouraçado Potemkin de Eisenstein e Em Busca do Ouro de Chaplin, o primeiríssimo longa-metragem de Alfred Hitchcock é realizado (embora não exibido até 1927).

O Jardim da Alegria (1925) conta uma história sem grandes pretensões. Patsy Brand (Virginia Valli) é uma corista no music hall 'Pleasure Garden'. A moça casa-se com Levett, senhor de negócios que vai enriquecer nas colônias inglesas dos Trópicos. Antes de partir para sua lua de mel, Patsy conhece Jill, namorada de Hugh, amigo de seu marido, e graças à sua ajuda, Jill começa a trabalhar no teatro. Levett e Hugh partem para as colônias britânicas e Patsy segue a rotina de sua vida londrina, mas Jill facilmente esquece o namorado e entrega-se aos homens e ao luxo. Patsy vai para os Trópicos ao descobrir que seu marido está doente, mas o encontra alcoólatra, vivendo com uma nativa. Ela o abandona e o marido assassina a nativa, enlouquecendo, e tentando matar a própria esposa.

O melodrama sobre infidelidade prenuncia algumas das características mais marcantes da obra do Mestre do Suspense. O erotismo, sutil, aparece já neste primeiro trabalho. Em uma cena em que as duas chorus girls trocam de roupa, a câmera exibe, imóvel, as peças sendo jogadas, acumulando-se dentro do plano, estimulando o espectador a especular sobre a nudez das garotas, ponto central da cena. A obsessão pelas loiras é introduzida timidamente - a saber, as duas atrizes do filme são morenas. Mas na cena inicial, em um show do music hall, todas as coristas dançam com perucas loiras, de pernas à mostra, devidamente valorizadas pelos closes do diretor. O voyeurismo sacramentado em Janela Indiscreta se apresenta na figura de um senhor na primeira fileira do music hall, que usa de seus binóculos para enxergar, em fullscreen, as pernas dançantes das jovens coristas. Uma síntese de importantes aspectos do diretor apresentados logo em sua primeira sequência cinematográfica!

O primeiro plano do filme recebeu certas interpretações expressionistas. O Jardim da Alegria foi filmado na Itália e na Alemanha, um ano após Hitchcock ter tido sua experiência nos estúdios da UFA, trabalhando em um filme ainda não como diretor. Naquele ano, Hitchcock travou contato e assistiu o clássico de Murnau, A Última Gargalhada, ser filmado. No primeiro plano de O Jardim da Alegria, as dançarinas são mostradas, em plano geral, descendo uma escada em espiral. Sendo este um elemento extensamente explorado no cinema expressionista alemão, realizado àquela época, supõe-se ter sido a inspiração de Hitchcock para seu primeiro plano cinematográfico. Não à toa, o expressionismo influenciará boa parte de sua obra, assim como o cinema americano em geral nas próximas décadas.

O humor de Alfred Hitchcock, sempre presente como alívio ao suspense, nasce na figura do cachorro Cuddles, que interrompe as orações de uma das moças lambendo-lhe os pés e, ao longo do filme, contrasta com o crescendo do drama. Quando lançado, a crítica louvou o diretor, ironicamente, pela qualidade "americana" do filme. Trata-se de uma época em que o cinema britânico, decadente, era considerado como inferior frente às conquistas técnicas americanas desde a ascensão de D. W. Griffith. Mas Hitchcock ainda teria pouco mais de dez anos para nos legar seus grandes clássicos britânicos, Os 39 Degraus e A Dama Oculta, até ele também se render à maquina de sonhos dos grandes estúdios de Hollywood e, então, cristalizar-se como um gênio maior da sétima arte.

sábado, 4 de abril de 2009

Egotrip

"Você não existe. Eu não existo. Mas estou tão poderoso na minha sede que inventei a você para matar a minha sede imensa. Você está tão forte na sua fragilidade que inventou a mim para matar a sua sede exata. Nós nos inventamos um ao outro porque éramos tudo o que precisávamos para continuar vivendo. E porque nos inventamos, eu te confiro poder sobre o meu destino e você me confere poder sobre o teu destino. Você me dá seu futuro, eu te ofereço meu passado. Então e assim, somos presente, passado e futuro. Tempo infinito num só, esse é o eterno."

~ Caio Fernando Abreu, "O Rapaz Mais Triste do Mundo".


Desferir golpes e sentenças e palavras. E a Lua das cinco da manhã continua intacta, rindo da minha existência temporal. Não há tempo para o que se quer, embora o que quisesse antes seja o que tenho agora. Mas é sempre assim, quando tenho o que queria não o quero mais, quero outra coisa. Talvez tenha sempre sido a busca pela outra coisa. E com tanto a se fazer, por vezes, não faço nada. Gosto deste entorpecimento, da vaidade eloqüente quando se trai a si mesmo. Tempo só guardo para Renato e Caio, atualmente dois imprescindíveis, senão essenciais. Aquele me acompanha por horas a fio, com os versos de sempre, tão meus. Como alguém pode entender tanto outra pessoa? Vá entender. Ele me entende. E Caio é como um tapa na cara, um acorda-pra-vida pra tudo o que existe em mim. Há tanto a se mostrar, a se dar a conhecer. Quem sabe? Quem sabe o que se deve dar a conhecer? A quem? Quem pode dizer? Nessas horas, eu gosto de vagar pela casa vazia, passando as unhas pelas paredes, como se fortalecesse as garras, e dou voltas pela mesa procurando e cristalizando aquele pensamento maior do que quer que se seja, aquela fuga do tudo da vida. Eu amo a beleza e admito meus requintes de frivolidade. Tão frívolo amar quem quer que seja pela imagem sem palavras. Tão tolo quando se há apenas sorrisos prostrados, e não tentativas. Eu não tento. Eu nunca tento. Eu sempre conheço de antemão todos os meus fracassos. E muito bem vejo o que se passa nos olhos velados, no andar disfarçado da persona invisível. Eu sempre soube, dears. E quando do desamar do amor não realizado, me acomete esse cansaço de quem conta as horas, essa coisa meio Goethe de sair por aí morrendo pelos cantos. Que frívolo. Que glorioso. Talvez eu procure refúgio no inimigo, mas serei eu capaz de identificá-lo? A vontade é de sair por um circo, com balão amarrado no dedinho, procurando a mamãe de quem me perdi no intervalo. Haja saco pra existir por duas décadas. Se eu pudesse, bebia e fumava. Mas não posso. Não quero porque talvez, se décadas futuras vierem, posso precisar da minha “saúde”. Sou careta, então vomito palavras. É que é sábado e eu estou sozinho. Talvez não espacialmente, mas isto não é o que importa. Eu poderia estar na Times Square e estar sozinho, se é que me entende. Mas ninguém me entende, e isto é só constatação, antes que digam por aí que lamento os meus sábados solitários. Eu não lamento nada a ninguém. Com minha rena de pelúcia, eu me arranjo. E isto é tudo. Não, não é, porque meus dedos não se cansaram e eu estou aqui, com tanta coisa pra fazer, olhando os minutos passarem no relógio feito um idiota. Às vezes eu sou tão covarde pra começar a fazer as coisas. E o engraçado é que isto nunca me ocorreu, até eu registrar na frase anterior. Milagres do subconsciente no ato de escrever. Amanhã, eu quero o mundo. E para isso, há muito a se fazer. Sim, há tanto a se fazer e eu preciso ir, eu preciso beber água e lavar as mãos e o rosto, trocar Por Enquanto por Dancing Queen e respirar no ritmo dos mortais para conseguir alguma coisa. Alguma coisa. Ó céus, como eu ando insuportável!

quarta-feira, 11 de março de 2009

Ando Escutando Renato Russo

"Tem gente enganando a gente
Veja a nossa vida como está
Mas eu sei que um dia a gente aprende
Se você quiser alguém em quem confiar...
Confie em si mesmo."

'Mais Uma Vez'
- Renato Russo

Agora, não há satisfação nas mentiras engendradas no café da manhã. Aquelas bem articuladas pela auto-persuasão da mente ainda em sono que, a bem ou não, motivam o existir do resto da semana. Confiar é uma palavra peculiar. Na verdade, um verbo interessante. Eu confio, tu confias, ele confia. Tão leve e fácil soa assim, conjugada feito 1 + 1. Há quem julgue os sentimentos humanos assim, 1 + 1, resultado 2. E não que eu me diga particularmente humano, idiossincracias à parte, o que me motiva aqui talvez seja o excesso ou a completa falta de sinceridade. E o que importa numa distinção precisa quando o fato-mor já foi concretizado? Ou não? Seria este o fato-mor? Não percamos nosso tempo com definições por demais burocráticas! O que importa é que aprendi, pelo mal, a não fazer uso do verbo supracitado. E antes que este textículo em tom "manifesto" pretenda suavizações piegas, que eu diga que a melancolia advinda do descobrimento fica para mim e para mim só. O que eu tenho de valioso a ensinar aos jovens leitores, ainda na aurora de suas vidas, é a não demonstrarem tudo o que eu, por pureza idealista, exibi por tantos anos. Escondam seus olhos para aquilo que não desejam que conheçam! Simples assim! Quem sabe deste modo, quando a cólera lhes acometer, vocês não precisem insistir na nobreza e no valor dos seus sentimentos. Talvez vocês evitem, desta maneira, o desprazer magnânimo da explicação de seus corações e, mais torpe ainda, da minimização de vossos sofrimentos por quem mais estimastes. E quem sabe ainda, no advir da própria traição, evitem que lhe peçam permissão à felicidade que tu tanto ansiou, por tanto tempo, como só tu sabes. Há mal essencial maior do que este? Quando se conhece de antemão as fragilidades da alma? E a vergonha maior no final será pensar: Eu tentei. Para findar no nada. Mais uma vez.

terça-feira, 10 de março de 2009

Enfim, Justiça

Quem adivinharia, há duas semanas atrás, a reviravolta brutal que a trajetória mítica de Michael Jackson estaria prestes a sofrer? Quando fãs e espectadores de celebridades em geral acostumavam-se a ver o mega-astro visitando consultórios médicos ou fazendo compras, eis que ele, mais uma vez, surpreende nosso pequeno planeta e retorna às manchetes.

A conferência de imprensa da última quinta-feira assinala um momento histórico na maior carreira que o showbusiness já conheceu. Michael Jackson, o maior performer do século XX, depois de 12 anos sem excursionar o mundo com shows, retornará aos palcos. O mesmo Michael Jackson a quem, semanas atrás, a imprensa declarava estar à beira da morte.

O telão do O2, em Londres, enche-se com imagens de um passado reinado pela glória de um mega-gênio que extasiou os quatro cantos da Terra. A mensagem é clara: ele voltou! A espera enfim termina! Quando, então, Michael Jackson adentra o palco trajado devidamente como Rei do Pop, difícil é conter a sensação puramente surrealista em vê-lo aclamado por uma multidão em êxtase, triunfante, timidamente interrompendo o discurso por conta dos "I love you" dos fãs, como se, de repente, nada tivesse mudado entre este Jackson e o Jackson dos tempos de Dangerous.

O empresário do mega-astro deixa claro: o Rei do Pop retornou para os seus fãs e para terminar com os rumores sobre seu estado de saúde. E a equipe da AEG Live também confirma que Michael se submeteu a todos os exames e apresenta saúde perfeita. Resumindo, a imprensa terá de se ocupar em criar outros rumores a respeito do super-astro a quem declaram "decadente". Decadência invejável a de Mr. Jackson, devemos salientar, onde menos de cinco minutos e meia dúzia de palavras proferidas na press conference de Londres, são o suficiente para catapultá-lo às páginas principais dos jornais e internet, rendem matérias nos noticiários televisivos e especiais em emissoras de rádio. Decadência inventada pela imprensa para suprir a criação freak que fizeram de Michael Jackson, afinal, só em pré-venda, a demanda por ingressos para as apresentações do mega-astro em Londres já é o suficiente para encher 50 vezes a arena do O2, sendo que o cantor confirmou, por ora, apenas 10 shows. Sobre as vendas dos discos, nem precisamos comentar. Basta Michael ser fotografado com máscara de zorro e trajes indianos na rua para seus discos voltarem às paradas. Quem diria então quando, no momento onde ninguém esperava, ele anuncia seu tão aguardado retorno!

E é importante compreender as verdadeiras significações de um retorno de Michael Jackson além da superfície das bobageiras terrenas da mídia em geral (precisa de dinheiro, etc. etc.). Compreender esta reviravolta é entender a mítica e a magia sobrenatural de um gênio que, jogado à lama e crucificado na "opinião" pública, como nenhuma outra celebridade na história da indústria, emerge com a força de seu talento para vingar-se do mundo que o julgava acabado. O teaser exibido na conferência do O2 já dá o tom para as apresentações de Jackson. Ele não voltou para cantar sentado em banquinhos, como muitos queriam, ou para um show meia boca. Ele voltou para ser Michael Jackson, uma força suprema no palco, capaz de levar milhões ao êxtase com sua grande dança e grande música. E quem viveu e acompanhou sua história, fica este sentimento de justiça finalmente feita, a justiça aos olhos do mundo que Michael não recebeu com sua absolvição nas cortes, mas que receberá no triunfo do que promete ser o maior retorno da história da música.

Será épico observar Michael Jackson, contra tudo o que lhe fizeram, sentar no topo do mundo novamente e, como um Deus do Olimpo, rir de nossa ignorância mundana, da perspectiva daqueles que acreditavam que podiam romper com seu espírito supremo. Quem viver, verá!

domingo, 1 de março de 2009

As Máscaras de Dietrich

Enfim termina minha jornada Dietrichiana pelas 800 páginas da biografia de Maria Riva. Segundo ela, filha do mito, a mãe era controladora, egoísta, possessiva e neurótica. Claro que, à moda Christina Crawford, os relatos post mortem sobre abusos emocionais de divas do cinema tornam-se previsíveis, mas difícil é simpatizar-se com Riva que posa de vítima desde o dia que nasceu. Chega até a reclamar de quando, em tempos da tragédia de Lindbergh, ainda criança, era permitida sair de casa apenas com um guarda-costas, graças às cartas com ameaças de morte a ela que a mãe recebeu. Quando ela nos conta então, corriqueiramente, que seu apartamento em Nova York foi comprado pela mãe, e não pelo marido, fica difícil não notar a óbvia traição do relato parcial.

Mas interessante se torna a leitura de uma Marlene Dietrich supostamente decodificada, mas nunca decifrada. Não, Maria Riva não se arrisca em explicações ao comportamento da mãe, uma mulher que, segundo o relato, fazia jus à sua canção-tema Falling In Love Again. Um mito singular e contraditório, transgressora e, aparentemente, racista e machista; uma das almas da Hollywood dos anos 30, império do glamour, mas grande amiga de Hemingway; uma beleza inexplicável que permanecia extasiante ainda aos 70 anos; um ícone da Segunda Guerra Mundial, a mulher que dá as costas ao pedido de Hitler de ser o símbolo do terceiro Reich, que segue as tropas americanas entretendo soldados por toda a Europa. Esta Dietrich também é contada no documentário de Maximilian Schell, Marlene.

E a Marlene Dietrich de Schell é em muitos aspectos a Marlene Dietrich de Riva. Neste documentário de 1984, Maximilian Schell procurava explorar áreas da vida pessoal e carreira da atriz. Marlene, com mais de 80 anos, não coopera com grande fervor. Ranzinza em muitos momentos, ela recusa-se a ser fotografada para o filme, uma óbvia auto-proteção da lenda que criou de si mesma. Afinal, depois de sua última aparição nos cinemas, em 1978, Dietrich nunca mais deu as caras em público. O que assistimos são fotos e imagens de arquivo e dos filmes da atriz, e ao fundo, o som das fitas gravadas da conversa entre diretor e atriz. Protegendo sua própria mítica, ela entra em contradição ao dizer-se desinteressada nos seus filmes do passado e que nunca levou sua carreira a sério. Fala firme e fria, repudiando qualquer aspecto sentimentalista levantado por Schell, tachando-o kitsch e dizendo que é uma "filha de soldado". Quando ele finalmente convence Marlene a assistir cenas antigas de seus filmes para comentá-los, um membro do staff da atriz lhe entrega a seguinte citação de Dante Alighiere: "Não existe maior dor do que as lembranças de felicidades passadas em tempos de miséria".

Inexplicavelmente, Dietrich nega ter tido uma irmã com quem manteve contato por toda a vida, segundo o livro de Riva. E numa das partes mais chocantes, assume tom fortemente preconceituoso contra o Women's Lib, argumentando que, segundo experimentos, o cérebro feminino é "mais leve" do que o cérebro masculino. Certamente, a Dietrich de 80 e poucos anos estava longe daquela que fascinou Hollywood com seu beijo lésbico de Marrocos, em 1930.

Perto do final, as coisas esquentam e Schell decide abandonar o projeto. Uma Dietrich nervosa pragueja: Ninguém nunca me abandonou desta forma antes! Você será o primeiro e o último, tenha certeza! Uma montagem de vídeos da atriz, acelerados, permeia a sequência, como se buscando decifrar o enigma da lenda que atravessou décadas - a resposta pretendida inicialmente no documentário, mas negada pela perspicácia da senhora octogenária que pretende permanecer como mito. Mas na última cena, a fortaleza rui. Schell lê um poema favorito da mãe de Dietrich, sobre morte, amor e arrependimento. As lágrimas são audíveis e a máscara rígida cai. Schell, afinal, nos confunde por não ter revelado em seus 90 minutos quem era a verdadeira Marlene Dietrich. E na dor contida nestas lágrimas, resta-nos apenas a especulação sobre a humanidade velada no mito, a humanidade escondida e maquiada de Dietrich que nós nunca conhecemos.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Rainha da Re-Invenção?

Comum tornou-se os visitantes de meu humilde quarto se referirem à moça de um belíssimo quadro que se encontra agora na minha frente como "Madonna". Não me dei ao trabalho de corrigir nenhuma das vezes que tal infortunada confusão aconteceu. Quem me conhece um pouco além da superfície sabe como é absurda a idéia de que eu poderia cultivar um quadro de Madonna no meu humilde quarto. Francamente! O quadro em questão é uma foto em preto-e-branco da belíssima, única e divina Marilyn Monroe. Mas depois de tais confusões me pus a inspecionar mais de perto o quadro, não para reconhecer as razões óbvias que causaram tal "confusão", mas como se para me perguntar se eu, em minha pré-adolescência, não me apaixonei por um reflexo de Marilyn Monroe, e não por Madonna. Não posso ao certo dar uma resposta, embora muito contente ficaria se tal questionamento se revelasse verdadeiro.

Para qualquer mero conhecer de cultura pop, não é nenhuma novidade que Madonna se "inspirou" várias vezes em Marilyn Monroe. Em meus tempos de fã (à lá Dirk Bogarde em 1961, Meu Passado me Condena), inúmeras foram as fotos e vídeos de Madonna que vi ou li sobre terem sido inspirados por Marilyn Monroe. À época, eu pouco conhecia de Monroe ou da Era de Ouro de Hollywood, fonte maior da "inspiração" de Madonna. Entretanto, uma coisa torna-se óbvia para mim, em especial depois da passagem da entertainer pelo Brasil. Madonna é algo muito menor do que pintam que ela seja. E não me refiro à louvações sobre seu suposto talento artístico, afinal, a completa falta de talento de Madonna é óbvia à percepção de qualquer pessoa sensata. Mas quanto à sua condição de superstar, no país da euforia, ela não suscitou suspiros. E sejamos realistas, independente de paixões a parte, quando que Michael Jackson, em turnê mundial, não foi a manchete principal do país onde esteve? O astro "decadente" não pode sequer fazer compras sem ser cercado de papparazzis e fãs, como nas suas recentes visitas ao dermatologista. Na época, defendi que o desinteresse por Madonna vinha de uma imagem artística inexistente, de um roubo de mítica ao longo dos anos que ela cometeu contra Monroe e Dietrich, em especial. Não fosse isto, porque uma pessoa, em sã consciência, confundiria uma imagem de Marilyn Monroe com uma de Madonna? Alguém por acaso confunde Elvis Presley com James Dean? Bette Davis com Janis Joplin?

Mas pós minha era de "fã", nunca me dei ao trabalho de uma análise mais interessante dos rip offs que Madonna fez de outros artistas. Recentemente, veio ao meu conhecimento o blog Madonna Revelations, aparentemente mantido por um ex-fã, que expõe tudo isto por meio de fotos. Algumas parecem um pouco forçadas, admito. Por exemplo, o sutiã cônico de Bettie Page e o de Madonna. Poderia até ter sido uma inspiração, mas não uma cópia deliberada. Aliás, considero o momento do sutiã cônico de Gaultier um dos poucos originais de Madonna, se não sua maior trademark, se é que este termo se aplica a ela. Percebam que quando alguém imita Madonna, os looks mais "seguros" a serem usados, sem dar margem a outras interpretações, são o tramp-look de Like a Virgin, o sutiã cônico e o cabaret-look do primeiro bloco do Girlie Show. E certamente que um fã de Madonna poderia argumentar que ela teria direito a prestar homenagens aos seus ídolos. Eu certamente concordaria. Michael Jackson, meu ídolo, já posou como Chaplin, por exemplo. Mas o que acontece quando a "homenagem" não se resume apenas a uma sessão de fotos ou a um videoclipe que seja (ou quando todos estes se tornam homenagens), quando o "look" emerge para a vida real e a artista, sem pudores, copia até trajes e penteados famosos de grandes astros para desfilar em eventos? Acontece o registrado nas imagens abaixo:

- Greta Garbo (1, 2, 3)
- Bette Davis (1, 2)
- Brigitte Bardot (1, 2, 3)
- Marilyn Monroe (1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14)
- Marlene Dietrich (1)
- Audrey Hepburn (1)
- Jayne Mansfield (1)
- Princesa Diana (1)
- Jean Harlow (1, 2)
- Debbie Harry (1)
- Louise Brooks (1)
- Horst P. Horst e o videoclipe de Vogue (1, 2, 3)
- Carole Lombard (1)
- Jennifer Jones (1)
- ABBA (1)
- Tina Turner (1)

Há ainda uma matéria sobre o processo movido contra a estrela por plágio em seu videoclipe Hollywood

O triunfo do marketing: como uma mulher sem absolutamente nenhum talento artístico extraordinário, manipulando imagens em furto à aura de outras estrelas, conseguiu ser a mais famosa e a que vendeu mais discos em toda a história da indústria fonográfica? Como ela sequer pode ser coroada como uma espécie de rainha da re-invenção é uma questão absurda. Sendo ela todas as estrelas, na verdade, não é nenhuma. Madonna é estrela, mas nunca essencialmente um mito, o que demandaria, com o nível de fama dela, um resquício de originalidade que ela nunca demonstrou ter. Em uma coisa devo concordar com o dono do Madonna Revelations: Madonna pode ter emulado por boa parte de sua carreira Marilyn Monroe, mas nunca conseguiu conceber a aura sexy, infantil e trágica daquela estrela única. Madonna é vulgar demais para parecer humana a este ponto, e low-class demais para ser uma Dietrich, embora ela tenha tentado. 

E quem, afinal, é Madonna? Além de uma cantora e dançarina medíocre apoiada em superproduções? Além de uma media-attention-freak que atingiu o superestrelato graças a era do videoclipe e de suas polêmicas incansáveis? Além de uma estrela capaz de ser tudo menos ela mesma? Porque proclamam-na como uma artista de "vanguarda", "inovadora" e, risivelmente, autêntica? Talvez um breve exercício de revisionismo histórico, previsível e digno de quem, apesar de tudo, acredita que Madonna é merecedora do título artista.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

O Adágio

Evasivo. Ainda ouço tua acusação, longe, áspera, tu, sempre com essa aparência de casas bucólicas e cruzes na parede. Não lembro mais de como já fui; também não sei o que agora sou. O futuro preocupa-me porque não sei se vivo errado... será que existe isso? Viver errado? Ah, minto novamente. O problema não é o que há de ser, mas o tanto que já foi. Tanta coisa já foi que não há sã motivo para continuar sendo. Como se o que há de vir não seja apenas o pré-traçado desde o fatídico dia em que me encontrei nesta condição. Tudo o que foi há de ser novamente. Este talento sábio também adquiri naquele fatídico dia. E o que há de ser disto que intitulo de "minha vida" além da futura repetição dramatizada e plagiada, em trajes novos, de todos os infortúnios os quais tenho sido acometido?

Meu corpo está cansado. Aqui digo uma verdade. Há uma indizível crueldade nos reflexos dos espelhos. Não os tolero e não permaneço onde seus horrores existam. A defrontação com uma máscara pálida e degradante que não reconheço. Fico a olhar, buscando os doces traços a cada dia mais distantes, o sorriso ingênuo e aqueles cachos que cultivavam pomposamente em minha cabeça. Nisto há também Albinoni e o Adágio. A luz do dia cansa a letargia de minhas memórias. E nelas existe Albinoni e o Adágio. Em que vago momento do passado teria eu escutado os acordes deste hino à melancolia? Saberia eu, deste então, que o Adágio funcionaria tão perfeitamente como trilha-sonora da minha existência? Aqui está ele, indissolúvel em minh'alma, acompanhando-me como quem acompanha um cortejo, como quem, mais sábio do que eu, conhece o final da história e não recusa a admiti-lo. O Adágio é surreal, como minha figura, com seus passos apressados no absurdo da existência. O por quê, o pra quê. As cruzes na sala de estar. 

Tu precisas de um médico, dizias tua boca sacrossanta. Nunca há de entender. Nunca. Eu quero o que tenho e não pertenço a nada. E nunca houve tragédia maior no sofrimento humano, coisa que tu, simplória de alma, nunca há de conhecer. Pra ti e para o mundo foi divertido, derrocarem uma alma que poderia amar. Talvez seja este teu medo maior. Foi minha ruína. E agora andas a sorrir, como se o esboço de um sorriso patético e compassivo devolvesse a mim o direito que tu e teu mundo me tolheram. Odeio a quem mais amo. Que delírio indecifrável. Com teus olhos dizes, o ódio será a sua herança. Teu olhar reprovador lega-me o direito existencial da infelicidade, legitima minha degradação cada dia mais indisfarçável, o fracasso de viver em movimento que tu criaste com esmero único.

E quando pouso os olhos no exterior da janela, em ímpeto irracional, me acompanha o Adágio, resoluto. A luz solar incide em meus olhos e crispo, caio em dor. A luz do dia nega-me a memória, tudo que ainda resta. O Adágio é irreversível como a vida, e inevitável. Fecho as cortinas. Não mais existe exterior em mim. O Adágio é a interiorização da dor. Não existo. Sou um fantasma entorpecido, paralítico. Sádico em persistir num abrir e fechar de olhos despropositado e incapacitado. Sou o lamento de tudo o que poderia ser se não fosse o que sou. Intrínseco. Eu sou a tragédia desumana. Eu sou o Adágio.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

O Erotismo Exótico da Musa de Sternberg

Marlene Dietrich não era deste planeta. Era uma Deusa do Olimpo, uma Deusa das Sombras que caiu nos encantos de um mago da ilusão do século XX (o cinema), Josef von Sternberg. Juntos, eles criariam algumas das imagens mais gloriosas da sétima arte, em sete obras que filmaram. Blonde Venus, ou A Vênus Loira em português, foi uma delas.

1932. Marlene Dietrich brilhava no star system hollywoodiano como nenhuma outra estrela. Descoberta por Sternberg, ela filmara o clássico O Anjo Azul em 1930, na Alemanha, e assinara um contrato com a Paramount nos Estados Unidos. Na terra de Tio Sam, aliada ao mago Sternberg, ela emprestou sua divindade para os filmes Marrocos, Desonrada e O Expresso de Shanghai. Na hora de filmar o quarto filme, o script escolhido foi A Vênus Loira.

A Vênus Loira está longe de ser, enquanto obra de arte, uma das melhores colaborações de Dietrich & Sternberg. Mas nem por isto é uma das menos interessantes. 

Marlene Dietrich divide a telona com Herbert Marshall e com um então novato Cary Grant (Cary, segundo Maria Riva, filha da atriz, em sua biografia Marlene Dietrich, vendia camisas nos sets de filmagem para conseguir uma "grana extra"). Ela vive Helen Faraday, uma cantora de cabaré na Alemanha, que conhece Ned (Marshall) e se muda para os Estados Unidos. Casada e com um filho, um drama instaura-se em sua vida: seu marido, um químico, foi contaminado com Radium e necessita de um caro tratamento médico na Alemanha para ser curado. Helen decide retornar aos palcos para ajudar nas despesas de casa, quando conhece o milionário Nick Townsend (Grant), a quem ela se "prostitui" para conseguir a quantia necessária para o tratamento de Ned.

Dietrich, sendo uma das primeiras "femme fattale" do cinema norte-americano, estava habituada a protagonizar filmes onde sua personagem tinha certo "caráter duvidoso". Em A Vênus Loira, o tema "prostituição" surge logo em suas cenas iniciais, quando Marlene nada nua em um rio da Alemanha. Herbert Marshall se aproxima e pergunta se ela poderia "sair" com ele depois de seu número no teatro, ao que ela responde negativamente, afirmando que não fazia este tipo de coisa. É assentada a temática para o desenrolar da trama. Depois desta cena, Josef von Sternberg enche a nossa tela com a água do rio, agora vazio, sem o corpo da ninfa Dietrich, para abrir um novo plano também aquoso: a banheira do filho de Helen. Já casada, descobrimos o que aconteceu com a ninfa do lago: virou mamãe, dona-de-casa e esposa respeitável de Herbert Marshall. A noite após o encontro dos dois no lago é contada de forma interessante. Sternberg, para nos dizer "o que aconteceu", usa o filho curioso do casal. Johnny pergunta a papai e mamãe o que os dois fizeram depois do encontro no lago. De forma romantizada, eles contam que "se beijaram" em uma árvore e depois se casaram. É a estória de ninar favorita do garoto, que assumirá tom importante no final da trama.

Helen Faraday agora é Helen Jones, a nova atração de um "nightclub" local. Sua noite de estréia não poderia ser menos do que espetacular. Um grupo de coristas, vestidas para um ritual de alguma tribo africana, entram no palco à batida de um tambor. Um gorila acorrentado acompanha as garotas. Começa um dos maiores momentos da Deusa Dietrich no cinema. Marlene era uma estrela diferente. Ela não era apenas desejável e glamurosa, uma aula de classe em movimento; ela era também o ambíguo, o exótico, o misterioso, o andrógino. Com uma intocável mística, ela seduziu as audiências de 1930 ao adentrar o palco do cabaré de Marrocos vestida em terno e cartola, terminando sua canção com um inesperado beijo na boca de uma das moças da platéia. Em A Vênus Loira, Dietrich nos fascina novamente ao invocar a força e a virilidade de um King Kong africano. Quando ela sobe ao palco, causando espanto em alguns membros da platéia que se perguntam se o gorila é mesmo "real", Sternberg nos seduz com sua revelação: o gorila, agora em quadro inteiro, tira uma de suas "mãos" revelando uma nova mão, branca, pálida, delicada. A outra mão é revelada e então a cabeça... Marlene Dietrich enfim se revela! Livrando-se da carcaça do gorila, ela emerge triunfante e completa o "look" com uma peruca "afro" loira. Começa sua performance de Hot Voodoo. Sternberg filma Dietrich em contra-plongeé e somos inferiorizados perante à postura soberana da Rainha Loura Africana. A canção termina com o verso: "Eu quero ser má!". Dietrich dá o seu recado. Ser pura e casta não faz parte do seu plano cinematográfico. Trocando em miúdos, ela não é Doris Day.

No backstage ela conhece Nick (Grant), cuja reputação de "pagar por favores" já lhe era conhecida. Depois de prestar os tais favores solicitados por Cary Grant, Dietrich chega em seu lar-doce-lar com um gordo cheque para despachar Herbert Marshall para a Alemanha. Ela obviamente mente sobre a origem do dinheiro. Diz que pediu adiantamento na boate. Com Marshall fora de cena, assistimos a um monótono segmento de cenas ilustrativas do "romance" de Grant e Dietrich. Os dois numa lancha, indo andar de cavalo, conversando na casa de Grant. Marshall enfim volta aos Estados Unidos e encontra sua casa vazia, com o telegrama que avisava seu retorno antecipado ainda selado. Onde estaria Dietrich e a criança? Coincidentemente, ela aparece em cena no mesmo momento, trajando um elegante e extravagante casaco de pele. Confrontada pelo marido, ela conta como obteve o dinheiro. Ned, ao invés de reconhecer a grandeza do ato de Helen, que feriu seus princípios e o próprio casamento para salvá-lo, enfurece-se. É importante ressaltar que o "romance" pós-ida de Ned à Alemanha de Helen e Nick não se concretizou de fato; Helen permaneceu como esposa fiel, com o coração dividido, mas reconhecendo que "devia" assumir seu compromisso e responsabilidade enquanto esposa e mãe. Herbert Marshall, com a cólera machista de um leading man dos anos 30, não quer saber de explicações: ele pergunta quanto a deve pela sua vida e exige que o filho retorne para sua guarda, afinal, só assim ele seria "bem criado". Sternberg nos releva um Marshall perigoso e cruel pela primeira vez, ao presentear-nos com um close-up em que as sombras encobrem seus olhos, e então temos certeza da seriedade de sua sentença.

Helen foge com o filho pelo país e é procurada pela polícia. Ned tenta alcançá-la seguindo pistas no caminho. Para sobreviverem, Helen canta em cabarés onde quer que se hospedem, mas quando seu rosto torna-se capa dos jornais de quase todo o país, ela é obrigada a desistir a arriscar ser reconhecida e perder o filho. Vai trabalhar em uma fazenda, onde encontramos uma surpresa agradável: Hattie McDaniel, a eterna "Mammie" de E o Vento Levou, ainda não consagrada, fazendo uma ponta como empregada. Um homem segue Dietrich, Hattie conta, e Dietrich vai ao seu encontro. Na segunda sequência mais memorável de A Vênus Loira, Marlene Dietrich desce ao encontro do homem em meio a galinhas e outras aves. Em outro ponto desta sequência, uma delas pousará sob seu ombro, como lhe afirmando sua afinidade e identidade com tais seres, ou seja, seu caráter extra-humano e quase animal. Como o gorila que afirma a soberanidade e virilidade, aspectos da persona de Marlene nas telonas, as aves assumem uma representação do seu espírito livre e do seu exotismo.

Dietrich consegue a atenção do policial disfarçado recostando-se em um muro, onde Josef von Sternberg captura com perfeição o rosto parcialmente em sombras, misterioso e belo da Vênus Loira. Os dois vão para um bar conversar, ironicamente sobre a "fugitiva" com o filho, a qual o policial não reconhece ser Dietrich. Uma desculpa do roteiro para Sternberg nos extasiar com close-ups inacreditáveis, quase absurdos, deste ser que não pode ter sido um de nós. Terminada a conversa, Dietrich revela sua identidade: ela é Helen Jones. E diz ainda que poderia continuar fugindo com o filho que não a alcançariam, mas que ela estava o entregando pelo bem dele, porque não era uma mulher "boa". Aqui Dietrich, certamente por intervenção dos censores, satisfaz o desejo dos puritanos da América: a mulher adúltera não pode vencer. E ser feliz? Nem pensar.

Ned chega à fazenda para apanhar o garoto e Sternberg nos exibe uma Dietrich resignada, de cabeça abaixada, humilhada. Não vemos mais seus olhos, cobertos pelo chapéu, apenas sua boca se mover, confirmando sua posição subhumana como mulher adúltera. Ned termina seu discurso ingrato dando-lhe um envelope com o valor que salvou a sua vida e exigindo que nunca mais procure seu filho. É melhor para ele esquecer a mãe, disse Ned.

A parte final de Vênus é um tanto quanto previsível considerando as circunstâncias e as facilidades/pobreza do roteiro. Helen Jones primeiro chega ao "fundo do poço", é exibida na tela com sua roupa desgastada, bêbada, lamentando o resultado falho de seu ato heróico. Depois, vemos ela como um grande sucesso internacional. Seu nome brilhante em neon na América do Sul e na Europa. Coincidentemente, Nick, em Paris, resolve ir assistí-la. Conversando sobre Helen com um amigo, descobre que ela é um "iceberg" como mulher, usando homem depois de homem como trampolim para o seu sucesso europeu. Subentende-se nisto, em um julgamento moral pobre, que Helen não pode ser feliz e, em psicologia barata e popular, que age deste modo pela perda do filho e do marido. O show de Dietrich começa e ela aparece em traje masculino à lá Marrocos, mas branco. Antes de cantar, acaricia o rosto de uma das coristas, reafirmando sua sexualidade ambígua. Destaque para a pobreza das canções de Marlene neste filme. Outras ruins estavam por vir, e competiriam com os inesquecíveis versos da apresentada neste momento no filme: "Se todos tivessem a cabeça no lugar/Ou se trocassem os pés pelas mãos/Ainda iria comer biscoitos na cama/O que eu iria perder?/Tomando sopa com um garfo/Ou se os bebês trouxessem as cegonhas/Acha que eu me importaria?/Eu ainda falaria/Não vou me aborrecer". Certamente, em nada invejariam Cole Porter.

Nick vai ao backstage e no espelho temos mais uma prova da infelicidade de Dietrich, em termos óbvios para a explicação barata de seu comportamento já supracitada. "Não se importa se vai ao inferno ou ao topo, viaja mais rápido quem viaja sozinho", lê-se no espelho. Nick conta que vai para a América para uma Helen desinteressada que diz nada ter a fazer na América, considerando que não pode ver seu filho. Na próxima cena, Helen não só já está na América, noiva de Nick, mas também na porta de seu antigo apartamento, onde moram Johnny e Ned. Ela entra para ver o filho após Nick conversar com Ned. Aquele deixa o apartamento e vemos um Ned abandonando a fúria no olhar, ao ver a mulher glamourosa em sua sala de estar apanhando bacias e objetos para banhar o filhinho. Depois do banho, o menino quer sua história de ninar. Aquela sobre quando mamãe e papai se conheceram. Receosos, o casal separado não quer contar a história. Contam cortando em certas partes. O menino fica frustrado e diz que não estão contando direito. Eles resolvem, então, contar a história inteira. E quando vemos, Marlene Dietrich já correu para os braços de Herbert Marshall. "Você pertence aqui", ele diz. The End! E o código Hays triunfa! Marlene vive feliz para sempre porque larga seu amor jovem, bonito, e milionário, Cary Grant, para voltar a ser dona-de-casa, mãe de família e esposa de Herbert Marshall. Enfim.

Um bem-sucedido veículo para Dietrich se tornou A Vênus Loira ao longo dos anós, apesar de ter bombado no box office na época de seu lançamento. Embora com um roteiro pobre, reafirma o mito de estrela misteriosa e exótica. Erótico do início ao fim, nele Marlene é o epicentro da pulsão sexual de todos os homens do filme. Neste filme, sexo é o problema e a razão. O que não poderia ser diferente quando se tem uma Deusa como Estrela. Todos a querem. Em especial a câmera de Sternberg, que registrou todo esse desejo por Marlene para que continuemos, através das décadas, desejando-na e adorando-na em sua imortalidade de celulóide.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Jane Fonda e a Sempre Simplória em Filme

Certo dia desta semana estava decidido a descansar mais cedo. Mas resolvi ligar a TV. Pra quê? Em minhas ansiosas trocas de canais, deparei-me com Jane Fonda na Warner Channel. Que estaria Jane Fonda, afinal, fazendo na quase-madrugada da Warner Channel? Sem muito esforço recordei-me daquele filme que ela havia feito há uns anos, sua "comeback" depois de um bom tempo fora das telonas... com a Jennifer Lopez.

Infelizmente, nunca tive a oportunidade de assistir a um filme de Jane Fonda - como, em contrapartida, já tive a infelicidade de assistir vários de Jennifer Lopez. Minha simpatia nata com Jane Fonda, além do seu status como grande atriz, vem de suas amizades com Bette Davis e Michael Jackson, além do fato de ser filha de ninguém menos que o lendário Henry Fonda. Motivos o suficiente para despertarem minha curiosidade em assistir o tal A Sogra. Talvez também por benevolência. Assim, quem sabe, até o final do ano contabilizo 4 ou 5 filmes hollywoodianos deste século que me dei ao trabalho de assistir em 2009?

Mas nem se Jane Fonda se unisse a Laurence Olivier ela triunfaria sob a pateticidade do material desta abominação "cinematográfica". Concordo que não se possa esperar grande coisa de um filme que tenha Jennifer Lopez no elenco, mas a presença de Jane Fonda me deu a ingênua esperança da possibilidade de entretenimento decente, talvez até inteligente. Altas expectativas as minhas, não? Com um roteiro de invejar qualquer aspirante a escritor de 12 anos, A Sogra conta a estória clichê de Charlotte (Jennifer Lopez), uma espécie de "temporária" em empregos diversos que conhece o cirurgião Dr. Fields (Michael Vartan), espécie de "homem perfeito", mas terá também que lidar com sua mãe Viola (Jane Fonda), uma madame empenhada em destruir o relacionamento dos dois por não aprovar Jennifer Lopez. E quem pode culpá-la?

Jennifer Lopez faz aqui o seu papel usual como já fez em centenas de seus outros filmes tão comumente exibidos nas Sessões da Tarde da tevê brasileira. Ela é, novamente, uma simplória moça-pobre-coitada-bonita-"na-moda". Ou seja, intragável como sempre. Sua on-screen-persona não diverge da sua imagem de popstar, continuamente empenhada em afirmar que por mais milhões de dólares que ela possa ter, ainda é a "jenny-from-the-block" e uma pessoa real-real-real-real-real-what-you-get-is-what-you-see ad nauseam em suas insípidas canções pop pra pré-adolescentes. Vendo Jennifer Lopez neste filme me fez pensar: como gente assim consegue ter fãs? Madonna, ao menos, ao mudar de fantasia, cor de cabelo e estilo musical a cada dois anos, consegue manter um mínimo interesse entre seus seguidores. Certamente as polêmicas e o passado pouco mais glorioso ajudam muito nesta questão. E o que tem Jennifer Lopez? Ela existe hoje assim como há uma década, quando lançou seu primeiro CD. Sua imagem estupidamente normal, refletida no typecasting de seus filmes, a projetam como uma estrela. E quando uma "estrela" tem look de modelo de outdoor de shopping center, temos um problema cultural. Neste sentido, J.Lo é apenas um produto de marketing de uma era onde estrelas são mortais e a estrela não está mais inserida num universo à parte, intocável e impenetrável. O que agrada o público no consumo de ídolos que poderiam ser seus vizinhos, está além da minha imaginação. Mas quando há multidões que, emocionadas, gritam em êxtase por Big Brothers, só me resta este sentimento de saudade solene de quando Marlene Dietrich era o arquétipo de imagem a qual devoção e histeria poderiam ser atribuídas.

Michael Vartan, namorado de Jennifer Lopez na "trama" parece mais um acessório inserido como "pausa" das cenas em que J.Lo From The Bronx e Jane Fonda se duelam. Até Renato Aragão e Xuxa Meneghel já demonstraram mais química nas telas do que esses dois, perdoem-me a heresia, atores. E o que dizer do final previsível, com direito à "explicação psicológica" sobre as atitudes da personagem de Jane Fonda? Ora, ela só fazia tudo aquilo porque a sogra também havia feito o mesmo com ela! Freud revira-se no caixão! É o que acontece quando cineastas com a profundidade intelectual de um pires põem-se a filmar em Hollywoood! Mas pra dizer que não foi de todo intragável, diverti-me maliciosamente com J.Lo sofrendo nas mãos de Jane Fonda, que certamente só fez esta "obra" de entretenimento barato pelo almighty dollar. Deve ter sentido saudades de quando dividia seu tempo na tela com Katharine Hepburn. Ah, destaque para a indicação de J.Lo pelo filme, como pior atriz de 2006 no Framboesa de Ouro.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Incluam-no Fora: A Vida de Farley Granger..?

Contrariando críticas negativas de consumidores da Amazon.com, adquiri a autobiografia de Farley Granger, "Include Me Out: My Life From Goldwyn To Broadway", lançada em 2007.

Minha espécie de fascinação-identificação com a on-screen persona de Farley Granger começou quando assisti ao hitchcockiano Festim Diabólico. Anos depois, tive a oportunidade de assistir o ator em seus maiores filmes, Pacto Sinistro, também de Hitchcock, Amarga Esperança, de Nicholas Ray, e Senso de Luchino Visconti. 

Mas em nada sua autobiografia relembra o neurótico Philip ou o canalha Franz. Farley Granger não é Philip nem Franz. Ele é um garoto que, depois de atuar em uma peça de teatro em Hollywood, é abordado por um caça-talentos do Sr. Sam Goldwyn, que acabou contratando-no por 7 anos com um salário de 100 dólares por semana.

Começa o "sonho americano" de Farley Granger, que irá estrelar em The North Star e The Purple Heart. Depois, voltando da Segunda Guerra, sua carreira cinematográfica deslanchará com Amarga Esperança de Nick Ray, filme que Hitchcock assistiu e que lhe rendeu o papel em Festim Diabólico.

Quem espera encontrar histórias sobre os bastidores, preparação e relação dos atores com Alfred Hitchcock, esqueça. Farley Granger gasta míseras 9 páginas das 244 do livro para contar sobre os momentos hollywoodianos mais importantes de sua carreira. Afinal, não fosse pelo público espectador destes filmes, Granger nem motivos (e nem contrato) teria para a publicação de uma autobiografia. 

Ele compensa em Senso ao descrever bem sua estadia na Itália, a relação da equipe com Luchino Visconti, seus jantares e intrigas. Poderíamos dizer que boa parte de Include Me Out é destinada a relatar sua longa amizade com a atriz Shelley Winters e aos jantares os quais já participou. Provavelmente nenhuma refeição de sua vida é esquecida. Todas são extensamente relatadas e comentadas ad nauseum. A vida de Farley parece, aliás, um endless banquete à là A Comilança.

Alguns pontos de sua história não são inteiramente esclarecidos. Os pais bebiam e brigavam. Farley sai de casa aos 20 e poucos anos e nunca mais os mesmos são mencionados. E enquanto ele não mantém segredos de sua bissexualidade, relatando, aliás, a noite em que perdeu a virgindade duas vezes, sua relação com Robert Calhoun, o co-autor do livro, nunca é explicada. Enquanto supõe-se que os dois são amantes, e a leitura prova isto obviamente, nada é explicitado. Curiosamente, a única e última notícia que li a respeito de Farley Granger no IMDB foi sobre a morte de Calhoun, em maio passado.

Destaque para o desfile de lendas cinematográficas nas páginas da vida de Farley. Ele é convidado frequente das tardes de jogos na casa de Gene Kelly, joga tênis na mansão de Charlie Chaplin, toma drinques com Bette Davis, Humphrey Bogart, Tyrone Power, namora Ava Gardner e é vizinho de Donald O' Connor e Paulette Goddard. Tudo na maior naturalidade. 

O grande grito de Farley no livro, apropriadamente intitulado Include Me Out (uma das frases famosas de Goldywn), é de que ele não precisou do studio system para vencer sua ambição de ser ator. Ou seja, Farley Granger não queria ser "star". E certamente, fosse essa sua ambição, sua carreira estaria condenada. Granger, enquanto contratado da MGM, só fez grandes filmes emprestado a outros estúdios, como a RKO e a Universal. Seu grande sonho era ser ator de teatro. O que fazer? Farley compra os anos restantes de seu contrato e, falido, se muda para Nova York. Após sua saída das telonas, ele trabalhará frequentemente em peças ao vivo na TV, quando a mesma era uma novidade, e peças de teatro. Parece ser um cara realizado.

Mas Include Me Out tem em seu título uma ironia. A de "incluir fora" Farley Granger da lista das autobiografias humanizadas e honestas. Se Farley Granger for o homem de Include Me Out, ele terá sido apenas um homem comum sem grandes preocupações sobre a vida e sobre sua própria arte. Terá sido apenas um homem que fez grandes trabalhos e que adorava uma birita com seus companheiros famosos. Mas eu, ao menos, prefiro acreditar que a superficialidade esteja restrita às 244 páginas de sua autobiografia maçante. Prefiro acreditar que a vida do homem que trabalhou com Hitch e Visconti tenha sido um pouco mais interessante e reflexiva, embora este aspecto, ao contrário de suas experiências gastronômicas, não tenha sido tema de uma página sequer de sua publicação.