quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Nouvelle Vague das Nove da Noite

Nada tem sentido. Se eu fosse Truffaut ou Godard nos idos de 59, 60, seria esta minha frase de abertura, em "off", numa tarde que nevasse, glorificando a cinematografia preto-e-branca. Paris que neva em 60. Eu então tusso e não há nada de regular nisto. Há algo em mim que quer morrer, só isso. Eu compreendo os desejos do meu corpo.

Eu não gosto de sair porque eu odeio gente. Odeio os narigões inquiridores, os risos hermeticamente debochados e aqueles olhos tão mercuriosamente vivazes! Porque dois olhos numa cara? E eu agradeço a invenção dos óculos escuros, minha salvação moral e pessoal. Ah, tudo escuro é tão mais bonito! A vida deveria ser um film-noir do Bogart com roteiro do Frank Capra. E assim estaria salva a humanidade! Pronto, tossi novamente.

Outro dia entrou um bicho estranho no meu quarto e eu não o matei. Tá, eu quis matar e quase o fiz até me dar conta da minha Crueldade majestosa perante o inocente bichinho. E então eu soube que eu era o mais detestável dos humanos da terra! Nem humano era, na verdade. Era uma espécie de Hitler dos insetos, usando o chinelo como câmara de gás. Que horror! E as lágrimas ameaçavam brotar, como em final de filme do Douglas Sirk. Eu, em minha compaixão absoluta, empurrava bruscamente o bichinho com a ponta do chinelo para fora do quarto, sala, cozinha e enfim para a rua. O processo foi lento dado o fato de que eu não queria causar danos à estrutura física do coitadinho, tampouco matá-lo acidentalmente, como também não queria, de modo algum, sentí-lo em minha epiderme. Deste modo, o pequenino inseto foi encaminhado, aparentemente com vida, para o corredor chuvoso. Não me preocupei em certificar-me se o bichinho havia encontrado sua família - teria ele uma família? - ou se sobreviveria o frio da noite chuvosa. Teria ele morrido? Eu haveria prolongado seu sofrimento? Como eu haveria de viver com este fardo? O bichinho e eu somos um, unos em solidão. E lá vem mais uma tossida.

Eu acho que não tenho nada de importante a dizer. Pra quê registrar tudo isso? É tudo besteira, é tudo inútil, tudo é lixo lixo lixo, as folhas amassadas e rasgadas, o salário do mês e as estrelas milenares. Eu quero um "jump cut" que me leve do nascimento à morte sem o aborrecimento de viver. Será que eu sou "nouvelle vague"?

sábado, 25 de julho de 2009

Ele Só Queria Dormir

"What moves me so deeply about this sleeping prince, is his loyalty to a flower. The image of a rose that shines through his whole being like the flame of a lamp, even when he is asleep. And I realized he was even more fragile than I had thought. Lamps must be protected. A gust of wind can blow them out."

The Little Prince
, Antoine de Saint-Expurey



O chanchadeiro Luis de Barros, pra lá de 57, seria meu último suspiro cinematográfico até o culminante momento. Naquela sessão, eu ainda não pensaria "No ano deste filme ele gravou tal disco" ou "Quando esse filme saiu ele casou" ou, no caso do Luis, "Ele só nasceria no ano seguinte". Eu não pensei porque era manhã em Santos e madrugada em Los Angeles e eu não sabia. O turning point no roteiro bergmaniano na vida de tantos incontáveis e inconsoláveis. E eu que tanto gostava do número 25, anotado com a convicção dos workaholics nos deveres diários daquele caderno de rotina, idealista até às margens e agora jogado nem sei mais onde - você é parte do passado, você é pré-25 de junho, dear! Tão petulante este caderninho que, aliás, tinha ele na capa. Quantos minutos do meu dia 25 de junho programados sabidamente naquele caderninho. Depois dele, páginas em branco. Tantas e tantas páginas em branco. Alguns esboços de tentativas na restauração da ordem suprema que o caderninho tem e deve exercer na vida do indivíduo prolífico e respeitável. Todos em vão. Há a clara certeza de que tudo foi perdido, para sempre. Worthless, diria o libertador Brick/Newman do meu amado Gata em Teto de Zinco Quente.

Worthless, Brick! Que saudades de Brick Pollitt! Brick bebe porque Skipper morreu. Liz Taylor, de vestido branco e gritando quase sempre, desaprova seu comportamento. Estranhas conexões! Ele bebia, enfim, porque não entendia de nada como eu também não entendo de nada, o que nunca foi tão claro como agora. É claro e irreversível porque é consciente, por isso, pungente. Nada será como antes, jamais, Brick e eu sabemos disto. Peter se foi para sempre, na estrela mais brilhante do céu, e eu só queria que ele fosse feliz. Eu só queria ver seu sorriso e poder agradecer - o que nunca consegui - pela lição que levarei por tudo o que resta da minha vida. Mas eu ao menos estive lá por ele, sempre, in his darkest hour, in his deepest despair, contra deus e o diabo na terra do sol se fosse preciso. E agora, longe de mim as carpideiras da TV e da vida, que choram sob o corpo ainda não enterrado de Mikey e sua avalanche - ou seria um tsunami? - de homenagens hipócritas a ele que, com o deleite dos pontinhos do ibope, ajudaram a matar! Me faz querer vomitar esse frenesi absurdo de querer santificar um homem que sempre foi santo, essa celebração histérica e covarde do triunfo da morte não-voluntária de Michael, a morte que lhe foi infligida em enorme escala pelos abutres que hoje travestem a bandeira da misericórdia querendo "humanizar" um ser mitológico que sempre foi e sempre será mais humano do que todos eles juntos!

Só mais torpe do que isso, ou no mesmo patamar, é quem te conhece e age como se Michael Jackson fosse só o cara que, eventualmente, enfeitava a decoração do mês na parede do seu quarto ou o popstar que fazia volume de megabytes no seu mp3. Ainda estou a pensar no merecedor do prêmio supremo da indiferença: o silêncio velado ou aquela pessoa que está com o "get over it, já passou UM dia!" na ponta da língua, mas nem precisa falar porque todo o tom do discurso está envolto nela, a frase proibida para ser expulso sem perdão do círculo interno de Bruno Vilângelo, porque essa gente sabe como ele é um esquentadinho encrenqueiro, né? Ah, uma criança esse menino, tão sem motivo, agindo como se tivesse perdido um parente! Mas tudo isso é bom, a querer ou não, porque é da verdade que eu gosto, que eu enfrento, como bem ensinou esse cara que enfeita a parede do meu quarto, venha a base de propofol e manslaughter ou não.

Eu, que nunca sequer sonhei com este dia ou que um dia iria debater sobre propofol, seus efeitos e suas práticas ilegais. Tudo isso acabou me remontando ao período pré-julgamento quando eu, transitando para a adolescência, tinha a companhia noturna quase semanal do Espantalho Michael Jackson de The Wiz. Era quase impossível passar dos primeiros créditos sem que as lágrimas brotassem, e assistir a ele depois, durante o julgamento, era como cravar sem piedade uma faca pelo coração. Eu me perguntava se aquele Michael Jackson vivaz, cujos olhos brilhavam e cujo espírito vibrante iluminava a tela, aos 19 anos, saberia o que o futuro lhe aguardava. Eu me perguntava o porquê de tanto desamor e de tanta injustiça. A morte de Michael Jackson só me trouxe uma conclusão: a de que, neste mundo, não existe justiça. Se existe uma outra vida e Michael agora elevou-se a ele, então ele está vingado, porque este mundo não o merecia. Se não, estamos condenados ao vazio da existência destituída de qualquer significado, sem caráter e sem moral, onde os homens justos e puros são levados às raias do propofol para poderem dormir em paz, para poderem sufocar as súplicas não atendidas por misericórdia humana, misericórdia por quem sangra e apanha por sangrar, por quem ama e apanha por amar.

Desde então, está difícil de sorrir, embora o coração esteja quebrado, como diria a canção favorita dele. Nós, que nem pudemos nos despedir. Mas uma imagem invertida vem se fixando na minha cabeça. É a parte final de The Wiz, onde Dorothy-Diana se despede dos amigos. A canção Believe In Yourself parece uma composição do Rei: "Believe in yourself/Right from the start/You have brains/You have a heart/You have courage to last your whole life through/If you believe in yourself/As I believe in you". O mágico falsário fica em lágrimas ao comover-se com a bondade e o amor de Dorothy, coisas que ele nunca conheceu. Ela lhe diz que os amigos, Leão, Espantalho e Homem-de-Lata, sempre tiveram em si mesmos o que procuravam. Ele, o falsário, teria de mudar deixando as pessoas verem quem ele realmente era. Os amigos de Dorothy/Michael somos nós dando adeus. "Sucesso, fama e fortuna, são todas ilusões. Tudo o que é real é a amizade que dois podem dividir", dizemos, com a mensagem que aprendemos com Michael. "Eu sentirei saudades de você todos os dias, porque eu conheci o amor verdadeiro", dizemos para ele. "Se não fosse por fosse, eu ainda estaria escondido, com medo de viver", nós confessamos. Michael nos agradece por termos sido seus amigos, seu fiel exército do amor nos tempos de alegria e tristeza. Ele vira de costas, segue em frente, pára, mas vira o rosto para uma última mensagem: "I love you more", ele nos diz com um inconfundível último sorriso. "Eu estou pronto agora". Ele havia partido.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Eu Sei o Que Acabou

"And now I understand what you tried to say to me
How you suffered for your sanity
How you tried to set them free
They would not listen, they did not know how
Perhaps they'll listen now

For they could not love you
But still your love was true

And when no hope was left in sight on that starry
starry night
You went away
As lovers often go

But I could have told you, Michael
This world was never meant for one
As beautiful as you..."

“Vincent”, Don McLean (parafraseada)


Talvez as palavras de Tyrone Power ao descobrir seu câncer terminal em The Eddy Duchin Story fossem as que ecoassem com mais destreza em minha letargia. Por que destruir um homem duas vezes? Justo quando ele encontra... tudo o que queria! Quando fica bom demais, eles tiram tudo de você. Eu não quero morrer!

Ele estava morto. Me and Janet really are two different people. I love you more! You ain't seen nothin' yet. And every opportunity the media has dissected and manipulated these allegations to reach their own conclusion. You haven't been where I've been mentally. Tell her to go to hell. Tom Sneddon is a cold man. You wouldn't believe the amount of mail that I get! I'll kill you, Mac! Neverland is not a home anymore. With a child's heart nothing's gonna get me down. Sorry Joseph, please don't be mad at me! I'm starting with the man in the mirror. I don't sing it if I don't mean it. Morto! E não há modo de conceber uma idéia tão absurda, tão resolutamente improvável... o meu Michael morreu!

E quem não viveu esta história na pele, como eu vivi, nunca vai entender em essência o que significa a frase supracitada. Se é que se entende sem conhecimento de causa os 12 suicídios já registrados. Agora, o mundo se regozija na celebração hipócrita àquele que desumanizaram, que coisificaram à condição de ícone-piada mundial para suas gargalhadas malditas e desgraçadas. Agora, todo mundo chora, todo mundo canta e milhões de discos/downloads são vendidos em um raio de segundo. Agora, de repente, virou cool ser fã de Michael Jackson e lamentar a morte do “ídolo”. Engraçado, eu lembro quando, até duas semanas atrás, ser fã de Michael Jackson era motivo de piada... e há muito tempo! Eu lembro das gozações no primário que freqüentemente me levavam a diretoria; pior, eu lembro no colegial, quando fui "eleito" à condição de "celebridade" por ser o freak que gostava de Michael Jackson! Eu lembro da caça às bruxas da mídia durante o julgamento, das informações absurdamente distorcidas, dos telejornais inteiramente dedicados à promotoria. Eu lembro do presidente da CNN chamando o veredicto de "tedioso"; eu lembro do rosto de Michael ao entrar na Corte no último dia... eu lembro de como destruíram a moral de um homem inocente perante a opinião pública. Eu lembro de como destruíram o espírito de um homem e riram sobre isso.

Foi mais do que um médico inescrupuloso e desgraçado que te levou à morte, Michael. O mundo te matou. Sua morte começou no dia em que viram no seu talento uma mina de ouro - daquele dia em diante você deveria viver para brilhar e brilhar, não importando a que dor, a que perda custasse. Sua capacidade de amar, no entanto, sempre foi maior, sempre esteve acima da enorme dor de viver. O seu coração podia abrigar o mundo e salvar as crianças era a sua missão, como vemos nas historinhas que só nós, fãs que o acompanhamos, conhecemos. Das crianças com doenças terminais que você ajudou, das famílias vítimas da enchente na Europa que você convidou para morarem em Neverland, dos mais de 300 milhões de dólares que você doou para instituições de caridade sem nunca ter divulgado press release algum a respeito, como fazem a maioria das celebridades. Mas como a história prova, nenhuma grande alma vive em paz nesta Terra.

Igual ao seu coração, era sua enorme fidelidade ao próprio espírito, à sua concepção idealista de viver. Mas era tanto poder para um negro norte-americano, amado pelos quatro cantos do planeta, com sucesso após sucesso, recorde atrás de recorde, que a América racista começava a se enfurecer. Que ano foi 1993 para os tablóides! Quantas carreiras foram construídas em cima do seu sangue, em cima dos painkillers que você tomava para ser catapultado ao palco da Dangerous Tour. Que importa se foram gravadas as conversas que revelavam a extorsão a qual você foi vitimado? Que importa se um caso criminal foi concluído após dois grandes júris por falta de provas? Que importa se o tão falado acordo de 1993 foi revelado há anos e está na internet para qualquer João da vida baixar, afirmando que o mesmo foi realizado pela seguradora sob os seus protestos, por uma acusação de negligência e não abuso sexual? Que importa se em Money você canta "Insurance, where does your loyalty lies?", anos antes de tais documentos virem a público? Nada importa, Michael. Por toda a eternidade, as Vejas da vida, tablóides travestidos, vão publicar a mesma mentira patética para quem quiser vomitar desinformação adquirida na sala de espera do consultório médico e julgar-se erudito no assunto.

Se uma mentira é contada com muita frequência, as pessoas começam a acreditar. Você já pronunciava sua própria sina em 93, Michael. O quão sábio você foi em vida! Talvez você já soubesse como a história terminaria mas você não mudaria, porque sabia que uma vida sem coragem era igualmente sem valor. Ninguém vai me impedir de ser quem eu sou, tu disseste certa vez. Seria mera coincidência a frase que encerra o álbum Invincible? O que você acabou de presenciar poderia ser o fim de um pesadelo particularmente aterrorizante. Não é! É apenas o começo.

10 anos depois, o mesmo cenário se materializa. Um julgamento-piada para quem quer que tenha lido tudo o que importava no caso: as transcrições da Corte. Para a mídia, o espetáculo do século, para a América, a chance de finalmente enterrar Michael Jackson, o superstar negro e seu legado. Diane Dimond, Larry Feldman, Gavin Arvizo, Maureen Orth, Tom Sneddon, Tommy Mottola... ATV. A que importava a verdade ao mundo, não é mesmo, Gary Dunlap? Mais perversamente divertido era sentar no sofá de casa, vendo as "bizarrices" de Michael Jackson na TV e dar risada do pedófilo, como se houvesse alguma coisa de engraçado em pedofilia, suas vítimas e seus agressores.


O seu coração tinha de parar porque ninguém agüenta tanta injustiça, tanto desamor. Você se foi por cima do jogo, morreu como o guerreiro que sempre foi em vida. Deu ainda um tapa final na cara do mundo todo, dando um gostinho de retorno para deixar suas performances apenas na nossa memória. Bem feito. O mundo não te merecia.

Quem sabe agora o que se passa na cabeça e nos corações dos anjinhos Prince, Paris e Blanket, as verdadeiras vítimas de sua morte? Como entenderão eles que o papai não volta mais? Eu não sei o que eles pensarão do mundo fora da Neverland de amor que o pai criou para eles. Eu sinto imensamente por eles e por uma dor que é imensurável. Eu sei o que penso de um mundo sem Michael Jackson e não gosto nenhum pouco disso. Não tem muito sentido nisso. E eu, que era tão sabichão, achava que entendia Morrissey. Agora eu entendo. Agora, a cada minuto da minha vida, eu sinto o chão cair sobre a minha cabeça.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Porque Eu Entendo Werther

"Oh! Essa gente razoável! Paixão! Embriaguez! Loucura! E vocês se conservam tão calmos, tão indiferentes, vocês, os homens de moral! Esmurram o bêbado, repelem o louco, cheios de asco, e passam adiante, como o sacrificador, agradecendo a Deus, como o fariseu, por não haver feito vocês iguais a um desses desgraçados!... Tenho-me embriagado mais de uma vez, as minhas paixões roçaram sempre pela loucura, e disso não me arrependo, porque só assim cheguei a compreender, numa certa medida, a razão por que, em todos os tempos, sempre foram tratados como ébrios e como loucos os homens extraordinários que realizaram grandes coisas, as coisas que pareciam impossíveis... Mas, ainda na vida ordinária, nada mais intolerável do que a todo momento ouvir gritar, sempre que um homem pratica uma ação intrépida, nobre e imprevista: 'Esse homem está bêbado! É um louco!...' Que vergonha, ó todos vocês que vivem em jejum! Que vergonha, ó homens sensatos!"

Goethe, "Os Sofrimentos do Jovem Werther"

Será que me arrependo de tanta demência deliberada? Eu não sei, porque não consigo percrustar aquela antiga área de consciência, antes tão solícita aos enigmas da alma. Talvez me agrade mais esta mascarada que me permite rir de mim mesmo e ordenar-me, ridi pagliacci. Como as noites de quintas-feiras carregam o ar decadente nessas cidadezinhas litorâneas! O ar tão decadente a quem se prostrar a dar às caras em suas ruas, porque todo mundo que vive em cidadezinhas litorâneas tem, em toda e qualquer esquina, alguma memória para lembrar. Elas estão sempre lá, esperando o passo as alcançar para viverem novamente, mesmo na solidão da mente do único que a experimentou. Eu não lembrei nada porque estava imune e sou sempre forte enquanto acreditar que sou. Mas que poderia fazer quando tu, feito espectro, materializa-se perante meus olhos? Ao longe, não me vês. Eu vejo e eu lembro. E quem irá entender o que significa a uma alma maculada, lembrar? Que magnânima vontade de infligir aos perversores do espírito a mesma sina que nos condenam, nós que começamos com uma alma tão bonita! É tarde para tudo, menos para o vôo dos morcegos, para os passos frementes do andarilho. Tarde até para o perdão, que nunca poderia ser leviano ou de meio coração. Eu sei onde todos estão, nos quartos, nas janelas, não pensando em mim, como eu não deveria pensar neles. Que hei de fazer se vivi a noite de quinta-feira numa cidadezinha litorânea? Parece ter prolongado seu espírito, porque chove lá fora e eu ainda sinto tudo porque sou um expressionista. Este silêncio intolerável torna o brotar das lágrimas tão mais fácil, tão essencialmente fácil. Ridi Pagliacci, tal como Donald O' Connor. Mas eu não vivo em Technicolor. Voltemos a Werther.

domingo, 19 de abril de 2009

O primeiro "Hitchcock Picture" por excelência

"O seu filme é tão ruim que nós iremos apenas colocá-lo na estante e esquecer a respeito", dizia um produtor britânico em 1926 ao jovem diretor Alfred Hitchcock. Algumas cenas refeitas e, então, o "filme ruim" é lançado aos cinemas londrinos com grande fanfarra e louvação.

The Lodger: A Story Of The London Fog (O Inquilino ou O Pensionista em português) foi considerado pelo diretor como o primeiro "Hitchcock Picture" de verdade. "The Lodger foi o primeiro filme em que tirei proveito do que havia aprendido na Alemanha. Nesse filme, todo o meu enfoque foi de fato instintivo, foi a primeira vez que exerci meu próprio estilo. Na verdade, pode-se considerar que The Lodger é meu primeiro filme," disse Hitchcock a Truffaut.

De fato, Lodger distancia-se do estreante de Pleasure Garden e aproxima-se do gênio de Os 39 Degraus. O filme começa com um assassinato, à noite, de uma mocinha loira. Letreiros em neon anunciam um show de coristas - "Tonight: Golden Curls" e pela primeira vez assistimos a um tema recorrente da filmografia de Hitchcock, o que Donald Spoto caracterizou como atração psicológica na associação entre sexo e assassinato, êxtase e morte.

Além do próprio assassinato, Hitchcock preocupa-se em explorar a paranóia instalada pela sensacionalização do crime, com o uso de fusões de primeiros planos dos rostos chocados dos cidadãos. Algumas mocinhas chegam a esconder os cabelos loiros nos chapéus, disfarçando-os com o uso de cachinhos negros para não caírem vítimas do temido assassino! Após esta sequência, somos transportados a uma casa de pensão onde vivem um casal e sua filha Daisy, quando um homem estranho chega até a calma residência. Hitchcock o filma na porta, com a boca entrecoberta por um xale, ao fundo da neblina londrina; em seguida, outro plano acentua o tratamento sinistro dado a este personagem, quando ele é filmado de costas, grande e sombrio, comparado à docilidade da Sra. Bouting. O plano-detalhe assume timidamente o aspecto fundamental que terá na obra futura do diretor, quando Jonathan, o pensionista, demonstra preocupação com sua maleta. Estabelecida a convicção do espectador de Jonathan, em suas excentricidades (ele pede também que todos os quadros com fotos de moças loiras, que estavam em seu quarto, sejam retirados), ser o assassino procurado, curiosa se torna a cena em que ele, sentado à mesa, põe-se tranquilamente a ler o jornal, como se Hitchcock anteviesse o mesmo momento no grande A Sombra de Uma Dúvida, de 1943.

O assassino só ataca nas noites de terça-feira e, coincidentemente, nesta noite o pensionista resolve sair para um passeio. A Sra. Bouting, no entanto, acorda e o vê deixar a pensão. Hitchcock usa aqui das técnicas que afirma ter aprendido com os alemães, no uso do plongée no plano de Jonathan fechando a porta, e nas sombras da janela refletidas na parede do quarto da Sra. Bouting. Logo que o pensionista sai, outra jovem loira é atacada, rapidamente, como sugere a montagem que explora o susto da moça e das pessoas nos arredores. O assassino é exibido de costas, em passos rápidos, perdendo-se na escuridão das ruas. No dia seguinte, os Bouting descobrem sobre o novo ataque e perguntam-se se Jonathan não seria o responsável. Eles fazem tal questionamento e olham para o lustre da sala, um elemento sempre indicativo da presença suspeita e misteriosa de Jonathan no filme. Outro prenúncio do trabalho futuro de Hitchcock acontece na cena em que Jonathan tenta abrir a porta trancada do banheiro enquanto Daisy está na banheira. Inspiração para Psicose?

Quando a polícia, a investigar o caso, chega até a pensão dos Bouting, o quarto de Jonathan é revistado e sua preciosa maleta é aberta. Encontram um revólver e uma série de artigos relacionados aos assassinatos das jovens loiras. Jonathan vai ser levado preso, mas consegue fugir, algemado, e combina com Daisy de se encontrarem perto de um poste de luz. Lá, com o recurso do flashback, ele nos conta que sua irmã foi morta pelo misterioso assassino de loiras. Sua mãe então caiu enferma e faleceu, e ele lhe prometeu não descansar enquanto não encontrasse o assassino. Eles passam em um bar, cena utilizada por Hitchcock para caracterizar a estranheza na situação da moça dando-lhe de beber (Jonathan estava algemado), fazendo assim as pessoas no local indicarem-no como o procurado assassino quando a polícia chega procurando informações.

No drama desta sequência, Jonathan e Daisy são perseguidos por uma multidão enquanto, paralelamente, ainda no bar, um policial recebe uma ligação que revela a prisão do verdadeiro assassino. Preso em uma grade pelas suas algemas, Jonathan é atacado por uma multidão enfurecida até a chegada dos policiais. A salvo, somos convidados a presenciar o "happy ending" que o star system não poderia negar. Hitchcock, inicialmente, queria que Ivor Novello, ator que interpreta Jonathan, sumisse ao fim do filme deixando sua inocência ou culpa sem explicações. Mas Novello, grande astro, não podia ser considerado vilão por conta dos publicitários, e o final do filme teve de ser alterado. O que chegou às telas foi a cena de Jonathan e Daisy, felizes e casados em sua nova casa, recebendo os pais da moça para uma visita. Hitchcock estrutura bem a dinâmica dos pais de Daisy, personagens de caráter simples (há seu característico humor quando a Sra. Bouting dá a Jonathan sua escova de dente esquecida na pensão), com o casal. Embaraçados pelos carinhos dos noivos, eles o deixam a sós. No plano final, Jonathan e Daisy se entregam em um grande beijo em frente à janela. Ao fundo, vemos a placa em neon, piscando, anunciando "Tonight: Golden Curls". O mistério resolvido e a vida que prossegue.

Lodger tornou Hitchcock uma espécie de celebridade instantânea na Londres dos anos 20, no que consideraram ser o primeiro filme em que o nome do diretor foi mais aclamado do que o de suas estrelas. Enquanto obra cinematográfica, seja na temática de grande parte dos seus filmes - o homem inocente perseguido injustamente -, no sinistro das imagens sombrias, na fuga ao humor, sua dinâmica confirma as palavras do diretor: trata-se essencialmente da primeira obra hitchcockiana por excelência. Hitchcock beneficia-se do momento do cinema mudo para fazer o que melhor sabe: contar imageticamente, como no futuro o faria suprimindo diálogos, aqui o faz na redução dos intertítulos, como o fez Murnau – que declaradamente o influenciou –, àquela época, em A Última Gargalhada.

domingo, 12 de abril de 2009

O Passeio

"Até pensei que era mais
Por não saber que ainda sou capaz
De acreditar
Me sinto tão só
E dizem que a solidão até que me cai bem

Às vezes faço planos
Às vezes quero ir
Pra algum país distante
Voltar a ser feliz..."

Legião Urbana, "Maurício"

Ontem de noite eu andava e ouvi os meus passos. Então percebi que eu era eu e somente eu e que também estava sozinho. Era tarde e eu não sabia o que se faz quando se descobre que se está sozinho, então parei, olhei para os lados e me escondi perto de uma árvore numa dessas rua desertas, porque pior que estar sozinho é deixar que os outros saibam disto. Eles sempre sabem e eu escondo o horror de tudo isso, eu uso luvas, eu uso capa, chapéu, eu me transmuto no Homem Invisível para que deixem em paz minha solidão secreta que não é secreta e, enfim, o tempo passa. Outro dia vi umas crianças na saída do colégio, correndo para a banca de jornais para comprar as novas figurinhas, com as moedinhas do lanche que esconderam pela semana. E eu sabia disso e sorri pra mim mesmo, não esbocei sorriso porque não esboço sorriso pelas ruas, seja lá porquê motivo, mas sorri por dentro em simpatia, apesar de nem as figurinhas, nem as revistinhas, nem os papos, nem o jogo de bafo, nem os desenhos e nem as músicas sejam as mesmas dos meus tempos de guardar moedas para comprar figurinhas. E então, não tenho universo. Estou escondido atrás da árvore da rua que não sei o nome, deserta e a noite, diferente do meu espírito, é quente, e eu estalo os dedos pro tempo passar, porque tenho medo de voltar pra onde quer que seja e de ir pra qualquer outro lugar. Eu estalo os dedos e as imagens aparecem, porque é sempre assim, uma coisa leva a outra, uma imagem que leva a um pensamento que leva a uma lembrança que não se quer lembrar ou à lembrança forjada que tanto se quis e nunca existiu. E eu, de capa e chapéu, levanto e de repente fica tudo tão bonito e eu quero correr pra ti e te abraçar como nunca antes, dizer que te amo e que nunca quero ficar longe de ti, mas é tudo mentira e eu sinto o êxtase no nada, no pó da rua deserta onde estou perto da árvore, sozinho. Eu olho as janelas dos apartamentos ao redor e todos estão ocupados com suas pizzas de fim de semana, seus filmes de fim de noite, suas contas que vão vencer. E eu grito: Vocês amam? Mas são covardes e não me respondem, não se dão conta, querem amar sua imagem de amor ao invés de amar o ato de amar. Eu cansado estou de não ser o que querem que eu seja. Eu não sei se sou o que quero ser e nem o que quero ser. Eu só queria uma fotografia de alguém que já me foi importante, que ela caísse do céu como uma milagre daquele que nunca se manifesta, queria guardá-la no meu casaco e deitar junto da árvore onde me escondi até que a vida de mim expirasse, mas eu não posso porque eu ainda estalo os dedos. Talvez eu ainda transe essa loucura.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

A Estréia de Um Gênio

No ano de The Big Parade, O Encouraçado Potemkin de Eisenstein e Em Busca do Ouro de Chaplin, o primeiríssimo longa-metragem de Alfred Hitchcock é realizado (embora não exibido até 1927).

O Jardim da Alegria (1925) conta uma história sem grandes pretensões. Patsy Brand (Virginia Valli) é uma corista no music hall 'Pleasure Garden'. A moça casa-se com Levett, senhor de negócios que vai enriquecer nas colônias inglesas dos Trópicos. Antes de partir para sua lua de mel, Patsy conhece Jill, namorada de Hugh, amigo de seu marido, e graças à sua ajuda, Jill começa a trabalhar no teatro. Levett e Hugh partem para as colônias britânicas e Patsy segue a rotina de sua vida londrina, mas Jill facilmente esquece o namorado e entrega-se aos homens e ao luxo. Patsy vai para os Trópicos ao descobrir que seu marido está doente, mas o encontra alcoólatra, vivendo com uma nativa. Ela o abandona e o marido assassina a nativa, enlouquecendo, e tentando matar a própria esposa.

O melodrama sobre infidelidade prenuncia algumas das características mais marcantes da obra do Mestre do Suspense. O erotismo, sutil, aparece já neste primeiro trabalho. Em uma cena em que as duas chorus girls trocam de roupa, a câmera exibe, imóvel, as peças sendo jogadas, acumulando-se dentro do plano, estimulando o espectador a especular sobre a nudez das garotas, ponto central da cena. A obsessão pelas loiras é introduzida timidamente - a saber, as duas atrizes do filme são morenas. Mas na cena inicial, em um show do music hall, todas as coristas dançam com perucas loiras, de pernas à mostra, devidamente valorizadas pelos closes do diretor. O voyeurismo sacramentado em Janela Indiscreta se apresenta na figura de um senhor na primeira fileira do music hall, que usa de seus binóculos para enxergar, em fullscreen, as pernas dançantes das jovens coristas. Uma síntese de importantes aspectos do diretor apresentados logo em sua primeira sequência cinematográfica!

O primeiro plano do filme recebeu certas interpretações expressionistas. O Jardim da Alegria foi filmado na Itália e na Alemanha, um ano após Hitchcock ter tido sua experiência nos estúdios da UFA, trabalhando em um filme ainda não como diretor. Naquele ano, Hitchcock travou contato e assistiu o clássico de Murnau, A Última Gargalhada, ser filmado. No primeiro plano de O Jardim da Alegria, as dançarinas são mostradas, em plano geral, descendo uma escada em espiral. Sendo este um elemento extensamente explorado no cinema expressionista alemão, realizado àquela época, supõe-se ter sido a inspiração de Hitchcock para seu primeiro plano cinematográfico. Não à toa, o expressionismo influenciará boa parte de sua obra, assim como o cinema americano em geral nas próximas décadas.

O humor de Alfred Hitchcock, sempre presente como alívio ao suspense, nasce na figura do cachorro Cuddles, que interrompe as orações de uma das moças lambendo-lhe os pés e, ao longo do filme, contrasta com o crescendo do drama. Quando lançado, a crítica louvou o diretor, ironicamente, pela qualidade "americana" do filme. Trata-se de uma época em que o cinema britânico, decadente, era considerado como inferior frente às conquistas técnicas americanas desde a ascensão de D. W. Griffith. Mas Hitchcock ainda teria pouco mais de dez anos para nos legar seus grandes clássicos britânicos, Os 39 Degraus e A Dama Oculta, até ele também se render à maquina de sonhos dos grandes estúdios de Hollywood e, então, cristalizar-se como um gênio maior da sétima arte.