Goethe, "Os Sofrimentos do Jovem Werther"
Será que me arrependo de tanta demência deliberada? Eu não sei, porque não consigo percrustar aquela antiga área de consciência, antes tão solícita aos enigmas da alma. Talvez me agrade mais esta mascarada que me permite rir de mim mesmo e ordenar-me, ridi pagliacci. Como as noites de quintas-feiras carregam o ar decadente nessas cidadezinhas litorâneas! O ar tão decadente a quem se prostrar a dar às caras em suas ruas, porque todo mundo que vive em cidadezinhas litorâneas tem, em toda e qualquer esquina, alguma memória para lembrar. Elas estão sempre lá, esperando o passo as alcançar para viverem novamente, mesmo na solidão da mente do único que a experimentou. Eu não lembrei nada porque estava imune e sou sempre forte enquanto acreditar que sou. Mas que poderia fazer quando tu, feito espectro, materializa-se perante meus olhos? Ao longe, não me vês. Eu vejo e eu lembro. E quem irá entender o que significa a uma alma maculada, lembrar? Que magnânima vontade de infligir aos perversores do espírito a mesma sina que nos condenam, nós que começamos com uma alma tão bonita! É tarde para tudo, menos para o vôo dos morcegos, para os passos frementes do andarilho. Tarde até para o perdão, que nunca poderia ser leviano ou de meio coração. Eu sei onde todos estão, nos quartos, nas janelas, não pensando em mim, como eu não deveria pensar neles. Que hei de fazer se vivi a noite de quinta-feira numa cidadezinha litorânea? Parece ter prolongado seu espírito, porque chove lá fora e eu ainda sinto tudo porque sou um expressionista. Este silêncio intolerável torna o brotar das lágrimas tão mais fácil, tão essencialmente fácil. Ridi Pagliacci, tal como Donald O' Connor. Mas eu não vivo em Technicolor. Voltemos a Werther.
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