domingo, 19 de abril de 2009

O primeiro "Hitchcock Picture" por excelência

"O seu filme é tão ruim que nós iremos apenas colocá-lo na estante e esquecer a respeito", dizia um produtor britânico em 1926 ao jovem diretor Alfred Hitchcock. Algumas cenas refeitas e, então, o "filme ruim" é lançado aos cinemas londrinos com grande fanfarra e louvação.

The Lodger: A Story Of The London Fog (O Inquilino ou O Pensionista em português) foi considerado pelo diretor como o primeiro "Hitchcock Picture" de verdade. "The Lodger foi o primeiro filme em que tirei proveito do que havia aprendido na Alemanha. Nesse filme, todo o meu enfoque foi de fato instintivo, foi a primeira vez que exerci meu próprio estilo. Na verdade, pode-se considerar que The Lodger é meu primeiro filme," disse Hitchcock a Truffaut.

De fato, Lodger distancia-se do estreante de Pleasure Garden e aproxima-se do gênio de Os 39 Degraus. O filme começa com um assassinato, à noite, de uma mocinha loira. Letreiros em neon anunciam um show de coristas - "Tonight: Golden Curls" e pela primeira vez assistimos a um tema recorrente da filmografia de Hitchcock, o que Donald Spoto caracterizou como atração psicológica na associação entre sexo e assassinato, êxtase e morte.

Além do próprio assassinato, Hitchcock preocupa-se em explorar a paranóia instalada pela sensacionalização do crime, com o uso de fusões de primeiros planos dos rostos chocados dos cidadãos. Algumas mocinhas chegam a esconder os cabelos loiros nos chapéus, disfarçando-os com o uso de cachinhos negros para não caírem vítimas do temido assassino! Após esta sequência, somos transportados a uma casa de pensão onde vivem um casal e sua filha Daisy, quando um homem estranho chega até a calma residência. Hitchcock o filma na porta, com a boca entrecoberta por um xale, ao fundo da neblina londrina; em seguida, outro plano acentua o tratamento sinistro dado a este personagem, quando ele é filmado de costas, grande e sombrio, comparado à docilidade da Sra. Bouting. O plano-detalhe assume timidamente o aspecto fundamental que terá na obra futura do diretor, quando Jonathan, o pensionista, demonstra preocupação com sua maleta. Estabelecida a convicção do espectador de Jonathan, em suas excentricidades (ele pede também que todos os quadros com fotos de moças loiras, que estavam em seu quarto, sejam retirados), ser o assassino procurado, curiosa se torna a cena em que ele, sentado à mesa, põe-se tranquilamente a ler o jornal, como se Hitchcock anteviesse o mesmo momento no grande A Sombra de Uma Dúvida, de 1943.

O assassino só ataca nas noites de terça-feira e, coincidentemente, nesta noite o pensionista resolve sair para um passeio. A Sra. Bouting, no entanto, acorda e o vê deixar a pensão. Hitchcock usa aqui das técnicas que afirma ter aprendido com os alemães, no uso do plongée no plano de Jonathan fechando a porta, e nas sombras da janela refletidas na parede do quarto da Sra. Bouting. Logo que o pensionista sai, outra jovem loira é atacada, rapidamente, como sugere a montagem que explora o susto da moça e das pessoas nos arredores. O assassino é exibido de costas, em passos rápidos, perdendo-se na escuridão das ruas. No dia seguinte, os Bouting descobrem sobre o novo ataque e perguntam-se se Jonathan não seria o responsável. Eles fazem tal questionamento e olham para o lustre da sala, um elemento sempre indicativo da presença suspeita e misteriosa de Jonathan no filme. Outro prenúncio do trabalho futuro de Hitchcock acontece na cena em que Jonathan tenta abrir a porta trancada do banheiro enquanto Daisy está na banheira. Inspiração para Psicose?

Quando a polícia, a investigar o caso, chega até a pensão dos Bouting, o quarto de Jonathan é revistado e sua preciosa maleta é aberta. Encontram um revólver e uma série de artigos relacionados aos assassinatos das jovens loiras. Jonathan vai ser levado preso, mas consegue fugir, algemado, e combina com Daisy de se encontrarem perto de um poste de luz. Lá, com o recurso do flashback, ele nos conta que sua irmã foi morta pelo misterioso assassino de loiras. Sua mãe então caiu enferma e faleceu, e ele lhe prometeu não descansar enquanto não encontrasse o assassino. Eles passam em um bar, cena utilizada por Hitchcock para caracterizar a estranheza na situação da moça dando-lhe de beber (Jonathan estava algemado), fazendo assim as pessoas no local indicarem-no como o procurado assassino quando a polícia chega procurando informações.

No drama desta sequência, Jonathan e Daisy são perseguidos por uma multidão enquanto, paralelamente, ainda no bar, um policial recebe uma ligação que revela a prisão do verdadeiro assassino. Preso em uma grade pelas suas algemas, Jonathan é atacado por uma multidão enfurecida até a chegada dos policiais. A salvo, somos convidados a presenciar o "happy ending" que o star system não poderia negar. Hitchcock, inicialmente, queria que Ivor Novello, ator que interpreta Jonathan, sumisse ao fim do filme deixando sua inocência ou culpa sem explicações. Mas Novello, grande astro, não podia ser considerado vilão por conta dos publicitários, e o final do filme teve de ser alterado. O que chegou às telas foi a cena de Jonathan e Daisy, felizes e casados em sua nova casa, recebendo os pais da moça para uma visita. Hitchcock estrutura bem a dinâmica dos pais de Daisy, personagens de caráter simples (há seu característico humor quando a Sra. Bouting dá a Jonathan sua escova de dente esquecida na pensão), com o casal. Embaraçados pelos carinhos dos noivos, eles o deixam a sós. No plano final, Jonathan e Daisy se entregam em um grande beijo em frente à janela. Ao fundo, vemos a placa em neon, piscando, anunciando "Tonight: Golden Curls". O mistério resolvido e a vida que prossegue.

Lodger tornou Hitchcock uma espécie de celebridade instantânea na Londres dos anos 20, no que consideraram ser o primeiro filme em que o nome do diretor foi mais aclamado do que o de suas estrelas. Enquanto obra cinematográfica, seja na temática de grande parte dos seus filmes - o homem inocente perseguido injustamente -, no sinistro das imagens sombrias, na fuga ao humor, sua dinâmica confirma as palavras do diretor: trata-se essencialmente da primeira obra hitchcockiana por excelência. Hitchcock beneficia-se do momento do cinema mudo para fazer o que melhor sabe: contar imageticamente, como no futuro o faria suprimindo diálogos, aqui o faz na redução dos intertítulos, como o fez Murnau – que declaradamente o influenciou –, àquela época, em A Última Gargalhada.

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