quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

O Erotismo Exótico da Musa de Sternberg

Marlene Dietrich não era deste planeta. Era uma Deusa do Olimpo, uma Deusa das Sombras que caiu nos encantos de um mago da ilusão do século XX (o cinema), Josef von Sternberg. Juntos, eles criariam algumas das imagens mais gloriosas da sétima arte, em sete obras que filmaram. Blonde Venus, ou A Vênus Loira em português, foi uma delas.

1932. Marlene Dietrich brilhava no star system hollywoodiano como nenhuma outra estrela. Descoberta por Sternberg, ela filmara o clássico O Anjo Azul em 1930, na Alemanha, e assinara um contrato com a Paramount nos Estados Unidos. Na terra de Tio Sam, aliada ao mago Sternberg, ela emprestou sua divindade para os filmes Marrocos, Desonrada e O Expresso de Shanghai. Na hora de filmar o quarto filme, o script escolhido foi A Vênus Loira.

A Vênus Loira está longe de ser, enquanto obra de arte, uma das melhores colaborações de Dietrich & Sternberg. Mas nem por isto é uma das menos interessantes. 

Marlene Dietrich divide a telona com Herbert Marshall e com um então novato Cary Grant (Cary, segundo Maria Riva, filha da atriz, em sua biografia Marlene Dietrich, vendia camisas nos sets de filmagem para conseguir uma "grana extra"). Ela vive Helen Faraday, uma cantora de cabaré na Alemanha, que conhece Ned (Marshall) e se muda para os Estados Unidos. Casada e com um filho, um drama instaura-se em sua vida: seu marido, um químico, foi contaminado com Radium e necessita de um caro tratamento médico na Alemanha para ser curado. Helen decide retornar aos palcos para ajudar nas despesas de casa, quando conhece o milionário Nick Townsend (Grant), a quem ela se "prostitui" para conseguir a quantia necessária para o tratamento de Ned.

Dietrich, sendo uma das primeiras "femme fattale" do cinema norte-americano, estava habituada a protagonizar filmes onde sua personagem tinha certo "caráter duvidoso". Em A Vênus Loira, o tema "prostituição" surge logo em suas cenas iniciais, quando Marlene nada nua em um rio da Alemanha. Herbert Marshall se aproxima e pergunta se ela poderia "sair" com ele depois de seu número no teatro, ao que ela responde negativamente, afirmando que não fazia este tipo de coisa. É assentada a temática para o desenrolar da trama. Depois desta cena, Josef von Sternberg enche a nossa tela com a água do rio, agora vazio, sem o corpo da ninfa Dietrich, para abrir um novo plano também aquoso: a banheira do filho de Helen. Já casada, descobrimos o que aconteceu com a ninfa do lago: virou mamãe, dona-de-casa e esposa respeitável de Herbert Marshall. A noite após o encontro dos dois no lago é contada de forma interessante. Sternberg, para nos dizer "o que aconteceu", usa o filho curioso do casal. Johnny pergunta a papai e mamãe o que os dois fizeram depois do encontro no lago. De forma romantizada, eles contam que "se beijaram" em uma árvore e depois se casaram. É a estória de ninar favorita do garoto, que assumirá tom importante no final da trama.

Helen Faraday agora é Helen Jones, a nova atração de um "nightclub" local. Sua noite de estréia não poderia ser menos do que espetacular. Um grupo de coristas, vestidas para um ritual de alguma tribo africana, entram no palco à batida de um tambor. Um gorila acorrentado acompanha as garotas. Começa um dos maiores momentos da Deusa Dietrich no cinema. Marlene era uma estrela diferente. Ela não era apenas desejável e glamurosa, uma aula de classe em movimento; ela era também o ambíguo, o exótico, o misterioso, o andrógino. Com uma intocável mística, ela seduziu as audiências de 1930 ao adentrar o palco do cabaré de Marrocos vestida em terno e cartola, terminando sua canção com um inesperado beijo na boca de uma das moças da platéia. Em A Vênus Loira, Dietrich nos fascina novamente ao invocar a força e a virilidade de um King Kong africano. Quando ela sobe ao palco, causando espanto em alguns membros da platéia que se perguntam se o gorila é mesmo "real", Sternberg nos seduz com sua revelação: o gorila, agora em quadro inteiro, tira uma de suas "mãos" revelando uma nova mão, branca, pálida, delicada. A outra mão é revelada e então a cabeça... Marlene Dietrich enfim se revela! Livrando-se da carcaça do gorila, ela emerge triunfante e completa o "look" com uma peruca "afro" loira. Começa sua performance de Hot Voodoo. Sternberg filma Dietrich em contra-plongeé e somos inferiorizados perante à postura soberana da Rainha Loura Africana. A canção termina com o verso: "Eu quero ser má!". Dietrich dá o seu recado. Ser pura e casta não faz parte do seu plano cinematográfico. Trocando em miúdos, ela não é Doris Day.

No backstage ela conhece Nick (Grant), cuja reputação de "pagar por favores" já lhe era conhecida. Depois de prestar os tais favores solicitados por Cary Grant, Dietrich chega em seu lar-doce-lar com um gordo cheque para despachar Herbert Marshall para a Alemanha. Ela obviamente mente sobre a origem do dinheiro. Diz que pediu adiantamento na boate. Com Marshall fora de cena, assistimos a um monótono segmento de cenas ilustrativas do "romance" de Grant e Dietrich. Os dois numa lancha, indo andar de cavalo, conversando na casa de Grant. Marshall enfim volta aos Estados Unidos e encontra sua casa vazia, com o telegrama que avisava seu retorno antecipado ainda selado. Onde estaria Dietrich e a criança? Coincidentemente, ela aparece em cena no mesmo momento, trajando um elegante e extravagante casaco de pele. Confrontada pelo marido, ela conta como obteve o dinheiro. Ned, ao invés de reconhecer a grandeza do ato de Helen, que feriu seus princípios e o próprio casamento para salvá-lo, enfurece-se. É importante ressaltar que o "romance" pós-ida de Ned à Alemanha de Helen e Nick não se concretizou de fato; Helen permaneceu como esposa fiel, com o coração dividido, mas reconhecendo que "devia" assumir seu compromisso e responsabilidade enquanto esposa e mãe. Herbert Marshall, com a cólera machista de um leading man dos anos 30, não quer saber de explicações: ele pergunta quanto a deve pela sua vida e exige que o filho retorne para sua guarda, afinal, só assim ele seria "bem criado". Sternberg nos releva um Marshall perigoso e cruel pela primeira vez, ao presentear-nos com um close-up em que as sombras encobrem seus olhos, e então temos certeza da seriedade de sua sentença.

Helen foge com o filho pelo país e é procurada pela polícia. Ned tenta alcançá-la seguindo pistas no caminho. Para sobreviverem, Helen canta em cabarés onde quer que se hospedem, mas quando seu rosto torna-se capa dos jornais de quase todo o país, ela é obrigada a desistir a arriscar ser reconhecida e perder o filho. Vai trabalhar em uma fazenda, onde encontramos uma surpresa agradável: Hattie McDaniel, a eterna "Mammie" de E o Vento Levou, ainda não consagrada, fazendo uma ponta como empregada. Um homem segue Dietrich, Hattie conta, e Dietrich vai ao seu encontro. Na segunda sequência mais memorável de A Vênus Loira, Marlene Dietrich desce ao encontro do homem em meio a galinhas e outras aves. Em outro ponto desta sequência, uma delas pousará sob seu ombro, como lhe afirmando sua afinidade e identidade com tais seres, ou seja, seu caráter extra-humano e quase animal. Como o gorila que afirma a soberanidade e virilidade, aspectos da persona de Marlene nas telonas, as aves assumem uma representação do seu espírito livre e do seu exotismo.

Dietrich consegue a atenção do policial disfarçado recostando-se em um muro, onde Josef von Sternberg captura com perfeição o rosto parcialmente em sombras, misterioso e belo da Vênus Loira. Os dois vão para um bar conversar, ironicamente sobre a "fugitiva" com o filho, a qual o policial não reconhece ser Dietrich. Uma desculpa do roteiro para Sternberg nos extasiar com close-ups inacreditáveis, quase absurdos, deste ser que não pode ter sido um de nós. Terminada a conversa, Dietrich revela sua identidade: ela é Helen Jones. E diz ainda que poderia continuar fugindo com o filho que não a alcançariam, mas que ela estava o entregando pelo bem dele, porque não era uma mulher "boa". Aqui Dietrich, certamente por intervenção dos censores, satisfaz o desejo dos puritanos da América: a mulher adúltera não pode vencer. E ser feliz? Nem pensar.

Ned chega à fazenda para apanhar o garoto e Sternberg nos exibe uma Dietrich resignada, de cabeça abaixada, humilhada. Não vemos mais seus olhos, cobertos pelo chapéu, apenas sua boca se mover, confirmando sua posição subhumana como mulher adúltera. Ned termina seu discurso ingrato dando-lhe um envelope com o valor que salvou a sua vida e exigindo que nunca mais procure seu filho. É melhor para ele esquecer a mãe, disse Ned.

A parte final de Vênus é um tanto quanto previsível considerando as circunstâncias e as facilidades/pobreza do roteiro. Helen Jones primeiro chega ao "fundo do poço", é exibida na tela com sua roupa desgastada, bêbada, lamentando o resultado falho de seu ato heróico. Depois, vemos ela como um grande sucesso internacional. Seu nome brilhante em neon na América do Sul e na Europa. Coincidentemente, Nick, em Paris, resolve ir assistí-la. Conversando sobre Helen com um amigo, descobre que ela é um "iceberg" como mulher, usando homem depois de homem como trampolim para o seu sucesso europeu. Subentende-se nisto, em um julgamento moral pobre, que Helen não pode ser feliz e, em psicologia barata e popular, que age deste modo pela perda do filho e do marido. O show de Dietrich começa e ela aparece em traje masculino à lá Marrocos, mas branco. Antes de cantar, acaricia o rosto de uma das coristas, reafirmando sua sexualidade ambígua. Destaque para a pobreza das canções de Marlene neste filme. Outras ruins estavam por vir, e competiriam com os inesquecíveis versos da apresentada neste momento no filme: "Se todos tivessem a cabeça no lugar/Ou se trocassem os pés pelas mãos/Ainda iria comer biscoitos na cama/O que eu iria perder?/Tomando sopa com um garfo/Ou se os bebês trouxessem as cegonhas/Acha que eu me importaria?/Eu ainda falaria/Não vou me aborrecer". Certamente, em nada invejariam Cole Porter.

Nick vai ao backstage e no espelho temos mais uma prova da infelicidade de Dietrich, em termos óbvios para a explicação barata de seu comportamento já supracitada. "Não se importa se vai ao inferno ou ao topo, viaja mais rápido quem viaja sozinho", lê-se no espelho. Nick conta que vai para a América para uma Helen desinteressada que diz nada ter a fazer na América, considerando que não pode ver seu filho. Na próxima cena, Helen não só já está na América, noiva de Nick, mas também na porta de seu antigo apartamento, onde moram Johnny e Ned. Ela entra para ver o filho após Nick conversar com Ned. Aquele deixa o apartamento e vemos um Ned abandonando a fúria no olhar, ao ver a mulher glamourosa em sua sala de estar apanhando bacias e objetos para banhar o filhinho. Depois do banho, o menino quer sua história de ninar. Aquela sobre quando mamãe e papai se conheceram. Receosos, o casal separado não quer contar a história. Contam cortando em certas partes. O menino fica frustrado e diz que não estão contando direito. Eles resolvem, então, contar a história inteira. E quando vemos, Marlene Dietrich já correu para os braços de Herbert Marshall. "Você pertence aqui", ele diz. The End! E o código Hays triunfa! Marlene vive feliz para sempre porque larga seu amor jovem, bonito, e milionário, Cary Grant, para voltar a ser dona-de-casa, mãe de família e esposa de Herbert Marshall. Enfim.

Um bem-sucedido veículo para Dietrich se tornou A Vênus Loira ao longo dos anós, apesar de ter bombado no box office na época de seu lançamento. Embora com um roteiro pobre, reafirma o mito de estrela misteriosa e exótica. Erótico do início ao fim, nele Marlene é o epicentro da pulsão sexual de todos os homens do filme. Neste filme, sexo é o problema e a razão. O que não poderia ser diferente quando se tem uma Deusa como Estrela. Todos a querem. Em especial a câmera de Sternberg, que registrou todo esse desejo por Marlene para que continuemos, através das décadas, desejando-na e adorando-na em sua imortalidade de celulóide.

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