domingo, 8 de fevereiro de 2009

O Adágio

Evasivo. Ainda ouço tua acusação, longe, áspera, tu, sempre com essa aparência de casas bucólicas e cruzes na parede. Não lembro mais de como já fui; também não sei o que agora sou. O futuro preocupa-me porque não sei se vivo errado... será que existe isso? Viver errado? Ah, minto novamente. O problema não é o que há de ser, mas o tanto que já foi. Tanta coisa já foi que não há sã motivo para continuar sendo. Como se o que há de vir não seja apenas o pré-traçado desde o fatídico dia em que me encontrei nesta condição. Tudo o que foi há de ser novamente. Este talento sábio também adquiri naquele fatídico dia. E o que há de ser disto que intitulo de "minha vida" além da futura repetição dramatizada e plagiada, em trajes novos, de todos os infortúnios os quais tenho sido acometido?

Meu corpo está cansado. Aqui digo uma verdade. Há uma indizível crueldade nos reflexos dos espelhos. Não os tolero e não permaneço onde seus horrores existam. A defrontação com uma máscara pálida e degradante que não reconheço. Fico a olhar, buscando os doces traços a cada dia mais distantes, o sorriso ingênuo e aqueles cachos que cultivavam pomposamente em minha cabeça. Nisto há também Albinoni e o Adágio. A luz do dia cansa a letargia de minhas memórias. E nelas existe Albinoni e o Adágio. Em que vago momento do passado teria eu escutado os acordes deste hino à melancolia? Saberia eu, deste então, que o Adágio funcionaria tão perfeitamente como trilha-sonora da minha existência? Aqui está ele, indissolúvel em minh'alma, acompanhando-me como quem acompanha um cortejo, como quem, mais sábio do que eu, conhece o final da história e não recusa a admiti-lo. O Adágio é surreal, como minha figura, com seus passos apressados no absurdo da existência. O por quê, o pra quê. As cruzes na sala de estar. 

Tu precisas de um médico, dizias tua boca sacrossanta. Nunca há de entender. Nunca. Eu quero o que tenho e não pertenço a nada. E nunca houve tragédia maior no sofrimento humano, coisa que tu, simplória de alma, nunca há de conhecer. Pra ti e para o mundo foi divertido, derrocarem uma alma que poderia amar. Talvez seja este teu medo maior. Foi minha ruína. E agora andas a sorrir, como se o esboço de um sorriso patético e compassivo devolvesse a mim o direito que tu e teu mundo me tolheram. Odeio a quem mais amo. Que delírio indecifrável. Com teus olhos dizes, o ódio será a sua herança. Teu olhar reprovador lega-me o direito existencial da infelicidade, legitima minha degradação cada dia mais indisfarçável, o fracasso de viver em movimento que tu criaste com esmero único.

E quando pouso os olhos no exterior da janela, em ímpeto irracional, me acompanha o Adágio, resoluto. A luz solar incide em meus olhos e crispo, caio em dor. A luz do dia nega-me a memória, tudo que ainda resta. O Adágio é irreversível como a vida, e inevitável. Fecho as cortinas. Não mais existe exterior em mim. O Adágio é a interiorização da dor. Não existo. Sou um fantasma entorpecido, paralítico. Sádico em persistir num abrir e fechar de olhos despropositado e incapacitado. Sou o lamento de tudo o que poderia ser se não fosse o que sou. Intrínseco. Eu sou a tragédia desumana. Eu sou o Adágio.

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