sábado, 28 de julho de 2007

O "glorious feeling" de Gene Kelly


Uma querida amiga minha pediu-me para discorrer sobre esta obra-prima, e como não sou de negar pedidos (ainda mais para esta querida amiga em especial), cá estou! Talvez os vibrantes pingos de chuva de Kelly ajudem a afastar a um tanto sobrecarregada aura deste blog. Ora, eu não sou de todo raiva, afinal! Há quem, pasmem, considera-me até divertido!

Em todo caso, o motivo desta postagem é a obra máxima de um dos maiores dançarinos que Hollywood já filmou: Gene Kelly e o glorioso "Cantando Na Chuva".

E sim, permita-me confessar que se trata do meu filme favorito de todos os tempos, o que, no entanto, não me impede de uma análise objetiva do mesmo – em verdade, a grandeza de "Cantando na Chuva" transcende a fronteira entre o subjetivo e o objetivo. A paixão que ele causa não é meramente pessoal, mas advém também do reconhecimento da potencialidade do Homem quando este almeja a perfeição.

O ano de 1952 marcou o nascimento do maior musical da história do cinema mundial - estrelado e co-dirigido por Gene Kelly. Aliás, esqueçam estórias de one-hit wonders - ou óbvias injustiças do que se rotula one-hit wonder.

Gene Kelly felizmente não teve de arcar com o estigma de um Michael Jackson: começar sua carreira tornado-se um Deus com um sucesso comercial que nem ele nem outro ser humano qualquer poderia superar sendo, portanto, rotulado até o fim de seus dias como um essencial fracasso (no box office e na arte).

Quando o astro rodou "Cantando na Chuva", já somava dez anos de carreira e quarenta de idade. Já havia dançado nas telas com Judy Garland, Lucille Ball, Rita Hayworth, Frank Sinatra e até mesmo com Jerry (sim, o rato da dupla com o gato Tom!). Uma indicação ao Oscar de Melhor Ator aconteceu em 1946, pelo agora clássico "Marujos do Amor". Gene Kelly já era, portanto, um artista consagrado.

Mas foi quando este gênio da dança decidiu tomar o comando do set que superou eternamente seu arquiinimigo das telas, Fred Astaire, vingando na cultura popular como ícone insuperável do musical.

Sim, depois de assistir "Cantando na Chuva" você concordará com Kelly, quando este disse que se Fred Astaire era o Cary Grant da dança, ele era o Marlon Brando.

A começar pela trama, Gene Kelly já surpreende. A estória de dois superastros do cinema americano da era muda que têm de se adaptar ao cinema falado - a nova sensação - ou acabarem no esquecimento. É notório que os musicais, em sua maioria, não apresentavam uma estória ambiciosa.

Eram geralmente um palco de exposição para os astros da dança aliados a roteiros medíocres. Gene Kelly experimentou esta lógica no começo da carreira com "Du Barry Era Um Pedaço", por exemplo, assim como Astaire em vários de seus filmes.

Kelly, transpondo a antiga idéia de musical, cria não só o maior de toda a história, mas é capaz de uni-lo a uma das mais deliciosas comédias já colocadas em filme. Jean Hagen, em performance indicada ao Oscar, interpreta o par romântico do personagem de Gene nas telas do cinema mudo.

Incapaz de cantar ou simplesmente falar com graça correspondente à beleza de seu rosto que encanta o público, acaba sendo dublada pela personagem de Debbie Reynolds, mocinha do filme, apaixonada pelo personagem de Gene.

Quem já assistiu ao filme certamente percebeu aqui uma de suas grandes ironias. Debbie Reynolds, uma jovem de 19 anos na época, não canta nas seqüências de "You Are My Lucky Star" e "Would You" (esta, curiosamente, era uma das canções em que sua personagem dublava a voz da personagem de Hagen). A voz é da cantora Betty Noyes.

Outra curiosidade ainda na cena de "Would You", onde Debbie Reynolds está em um estúdio para dublar a voz de Jean Hagen. A tela do estúdio exibe a cena da canção com uma fala da personagem de Jean antes. Na lógica do filme, temos então Debbie Reynolds dublando Jean Hagen, que não fala nem canta por si na produção com som de seu próximo filme com Don, personagem de Kelly. No entanto, na filmagem real do filme (e aqui me refiro à "Cantando na Chuva"), Jean Hagen, que tinha uma voz versátil, dubla a si mesma. Então, na verdade, Debbie Reynolds finge que dubla Jean Hagen que, na verdade, dubla a si mesmo! Filme rico até nessas questões!

Além de Reynolds e Hagen, o filme traz mais um incrível talento. Donald O' Connor, que interpreta Cosmo, melhor amigo de Don, e nos brinda com uma das maiores performances do filme: "Make 'Em Laugh". Impossível descrever a graça deste palhaço-dançarino: só assistindo a este inesquecível momento do cinema para saber! Certamente valeu à pena a internação de uma semana após as filmagens, sofrendo de exaustão!

E certamente também valeu à pena o perfeccionismo ditatorial de Kelly - sim, ambos O' Connor e Debbie Reynolds comentaram mais tarde que não se deram bem com Gene no set. Reynolds declarou até que dar à luz e sobreviver às filmagens deste filme foram as coisas mais difíceis que já passou na vida. A química dos três na tela é, no entanto, estratosférica, em momentos como o número de "Good Morning".

Gene Kelly, astro máximo do musical com seu glorioso guarda-chuva preto, performa a faixa-título do longa e emociona com um show de talento que o elevaria ao nível icônico que só alguns Deuses do cinema atingem.

Aparentemente, ele possuía consciência de que, realizando este filme, estaria para sempre imortalizado. Não apenas pela grandeza dele em si, mas pelas inúmeras referências ao seu passado cinematográfico. A melodia de "Make 'Em Laugh" é a mesma de "Be A Clown", canção final de "O Pirata" (1948), em que contracenou com Judy Garland. A roupa de mosqueteiro usada para o início das gravações do filme de Lina & Don foi tirada diretamente da versão de Gene de "Os Três Mosqueteiros" (1948). O extenso número "Broadway Melody", então, traz uma série de flashbacks de "Casa, Comida e Carinho" (1950), "Words And Music" (1948), "Um Americano em Paris" (1951), entre vários outros.

É a celebração de Gene Kelly e a superação de Gene Kelly que, unidas, só poderiam resultar em sua obra-prima.

Após "Cantando na Chuva", o dançarino não protagonizou nenhum outro grande filme, ou que mereça ser comentado. Como diretor, esteve à frente de "Alô, Dolly!", sucesso com a diva Barbra Streisand vencedor de 3 Oscar.

"Cantando na Chuva", ironicamente, foi ignorado pela Academia. Recebeu 2 indicações, para Melhor Atriz Coadjuvante (Jean Hagen) e Melhor Trilha-Sonora. Gene, no entanto, recebeu no ano anterior um prêmio especial "em apreciação à sua versatilidade como ator, cantor, diretor e dançarino, e especificamente por suas brilhantes conquistas na arte da coreografia em filme."

Pois é, se tudo isto era verdade em 1951, certamente não haveria prêmios para agraciar a supra-genialidade deste Gene Kelly de 1952. Só mesmo com sua tão merecida imortalidade. Que os Céus o abençõem! Deve estar saltando entre nuvens a cantarolar "Gotta Dance!"