sábado, 25 de julho de 2009

Ele Só Queria Dormir

"What moves me so deeply about this sleeping prince, is his loyalty to a flower. The image of a rose that shines through his whole being like the flame of a lamp, even when he is asleep. And I realized he was even more fragile than I had thought. Lamps must be protected. A gust of wind can blow them out."

The Little Prince
, Antoine de Saint-Expurey



O chanchadeiro Luis de Barros, pra lá de 57, seria meu último suspiro cinematográfico até o culminante momento. Naquela sessão, eu ainda não pensaria "No ano deste filme ele gravou tal disco" ou "Quando esse filme saiu ele casou" ou, no caso do Luis, "Ele só nasceria no ano seguinte". Eu não pensei porque era manhã em Santos e madrugada em Los Angeles e eu não sabia. O turning point no roteiro bergmaniano na vida de tantos incontáveis e inconsoláveis. E eu que tanto gostava do número 25, anotado com a convicção dos workaholics nos deveres diários daquele caderno de rotina, idealista até às margens e agora jogado nem sei mais onde - você é parte do passado, você é pré-25 de junho, dear! Tão petulante este caderninho que, aliás, tinha ele na capa. Quantos minutos do meu dia 25 de junho programados sabidamente naquele caderninho. Depois dele, páginas em branco. Tantas e tantas páginas em branco. Alguns esboços de tentativas na restauração da ordem suprema que o caderninho tem e deve exercer na vida do indivíduo prolífico e respeitável. Todos em vão. Há a clara certeza de que tudo foi perdido, para sempre. Worthless, diria o libertador Brick/Newman do meu amado Gata em Teto de Zinco Quente.

Worthless, Brick! Que saudades de Brick Pollitt! Brick bebe porque Skipper morreu. Liz Taylor, de vestido branco e gritando quase sempre, desaprova seu comportamento. Estranhas conexões! Ele bebia, enfim, porque não entendia de nada como eu também não entendo de nada, o que nunca foi tão claro como agora. É claro e irreversível porque é consciente, por isso, pungente. Nada será como antes, jamais, Brick e eu sabemos disto. Peter se foi para sempre, na estrela mais brilhante do céu, e eu só queria que ele fosse feliz. Eu só queria ver seu sorriso e poder agradecer - o que nunca consegui - pela lição que levarei por tudo o que resta da minha vida. Mas eu ao menos estive lá por ele, sempre, in his darkest hour, in his deepest despair, contra deus e o diabo na terra do sol se fosse preciso. E agora, longe de mim as carpideiras da TV e da vida, que choram sob o corpo ainda não enterrado de Mikey e sua avalanche - ou seria um tsunami? - de homenagens hipócritas a ele que, com o deleite dos pontinhos do ibope, ajudaram a matar! Me faz querer vomitar esse frenesi absurdo de querer santificar um homem que sempre foi santo, essa celebração histérica e covarde do triunfo da morte não-voluntária de Michael, a morte que lhe foi infligida em enorme escala pelos abutres que hoje travestem a bandeira da misericórdia querendo "humanizar" um ser mitológico que sempre foi e sempre será mais humano do que todos eles juntos!

Só mais torpe do que isso, ou no mesmo patamar, é quem te conhece e age como se Michael Jackson fosse só o cara que, eventualmente, enfeitava a decoração do mês na parede do seu quarto ou o popstar que fazia volume de megabytes no seu mp3. Ainda estou a pensar no merecedor do prêmio supremo da indiferença: o silêncio velado ou aquela pessoa que está com o "get over it, já passou UM dia!" na ponta da língua, mas nem precisa falar porque todo o tom do discurso está envolto nela, a frase proibida para ser expulso sem perdão do círculo interno de Bruno Vilângelo, porque essa gente sabe como ele é um esquentadinho encrenqueiro, né? Ah, uma criança esse menino, tão sem motivo, agindo como se tivesse perdido um parente! Mas tudo isso é bom, a querer ou não, porque é da verdade que eu gosto, que eu enfrento, como bem ensinou esse cara que enfeita a parede do meu quarto, venha a base de propofol e manslaughter ou não.

Eu, que nunca sequer sonhei com este dia ou que um dia iria debater sobre propofol, seus efeitos e suas práticas ilegais. Tudo isso acabou me remontando ao período pré-julgamento quando eu, transitando para a adolescência, tinha a companhia noturna quase semanal do Espantalho Michael Jackson de The Wiz. Era quase impossível passar dos primeiros créditos sem que as lágrimas brotassem, e assistir a ele depois, durante o julgamento, era como cravar sem piedade uma faca pelo coração. Eu me perguntava se aquele Michael Jackson vivaz, cujos olhos brilhavam e cujo espírito vibrante iluminava a tela, aos 19 anos, saberia o que o futuro lhe aguardava. Eu me perguntava o porquê de tanto desamor e de tanta injustiça. A morte de Michael Jackson só me trouxe uma conclusão: a de que, neste mundo, não existe justiça. Se existe uma outra vida e Michael agora elevou-se a ele, então ele está vingado, porque este mundo não o merecia. Se não, estamos condenados ao vazio da existência destituída de qualquer significado, sem caráter e sem moral, onde os homens justos e puros são levados às raias do propofol para poderem dormir em paz, para poderem sufocar as súplicas não atendidas por misericórdia humana, misericórdia por quem sangra e apanha por sangrar, por quem ama e apanha por amar.

Desde então, está difícil de sorrir, embora o coração esteja quebrado, como diria a canção favorita dele. Nós, que nem pudemos nos despedir. Mas uma imagem invertida vem se fixando na minha cabeça. É a parte final de The Wiz, onde Dorothy-Diana se despede dos amigos. A canção Believe In Yourself parece uma composição do Rei: "Believe in yourself/Right from the start/You have brains/You have a heart/You have courage to last your whole life through/If you believe in yourself/As I believe in you". O mágico falsário fica em lágrimas ao comover-se com a bondade e o amor de Dorothy, coisas que ele nunca conheceu. Ela lhe diz que os amigos, Leão, Espantalho e Homem-de-Lata, sempre tiveram em si mesmos o que procuravam. Ele, o falsário, teria de mudar deixando as pessoas verem quem ele realmente era. Os amigos de Dorothy/Michael somos nós dando adeus. "Sucesso, fama e fortuna, são todas ilusões. Tudo o que é real é a amizade que dois podem dividir", dizemos, com a mensagem que aprendemos com Michael. "Eu sentirei saudades de você todos os dias, porque eu conheci o amor verdadeiro", dizemos para ele. "Se não fosse por fosse, eu ainda estaria escondido, com medo de viver", nós confessamos. Michael nos agradece por termos sido seus amigos, seu fiel exército do amor nos tempos de alegria e tristeza. Ele vira de costas, segue em frente, pára, mas vira o rosto para uma última mensagem: "I love you more", ele nos diz com um inconfundível último sorriso. "Eu estou pronto agora". Ele havia partido.

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