domingo, 16 de novembro de 2008

Do Music Hall ao London Palladium: Os 39 Degraus de Hitchcock!

Num teatro de variedades iniciava-se o meu 22º longa-metragem hitchcockiano. Longe de perder a excitação na descoberta de uma nova obra de um dos gênios máximos da sétima arte, mas após Janela Indiscreta, Psicose, Um Corpo Que Cai e tantas outras obras-primas, custava-me acreditar que ainda faltava-me assistir a outro imortal de sua autoria. Faltava-me? Sim! Eu não havia assistido ao clássico Os 39 Degraus!

O herói hitchcockiano neste filme de sua fase britânica, adaptado do livro homônimo de John Buchan, é Richard Hannay. É ele quem entra no teatro logo na primeira cena, mas não é ele a quem somos primeiramente introduzidos. O Sr. Memória, atração da casa, é o primeiro personagem a quem conhecemos. Ele realiza a façanha de aprender 50 novos fatos todos os dias para agregá-los à sua incrível memória enciclopédica. Algumas perguntas banais são realizadas, as quais o Sr. Memória sempre tem a resposta. Aqui vemos Hannay pela primeira vez, sendo agraciado com uma resposta do Sr. Memória. De repente, tiros. Confusão, todos saem apressados. Hannay é curiosamente abordado por uma mulher, que pede para ir à sua casa. E vai!

Já na casa de Hannay, Annabelle, a mulher que lhe pediu abrigo, confessa que está sendo seguida. Hannay de início não acredita, mas confirma a confissão de sua estranha hóspede ao olhar pela janela. Dois homens parados na esquina, iluminados por um poste de luz. Annabelle então lhe conta o que soa como um grande absurdo: é uma espiã que está sendo perseguida por guardar um grande segredo envolvendo a segurança aérea de potências européias! Diz que seria apenas uma questão de dias, ou horas, para que o segredo fosse revelado, o que ela deveria impedir. A polícia não acreditaria mais do que você em mim. Estou lhe dizendo, estes homens agem rápido. Hannay, solícito, pergunta se pode lhe oferecer algo além do abrigo. Ela lhe pede um mapa da Escócia, lugar onde diz haver um homem a quem deve visitar se é que algo poderia ser feito. Informa-lhe também que o chefe dos homens que a seguem é um homem de "muitas caras", mas que pode ser reconhecido por não ter parte do seu dedo mindinho. É um ponto curioso para uma boa ironia hitchcockiana mais tardar no filme.

Um elemento importante na obra posterior de Hitchcock, a personificação do objeto que desempenhará papel-chave na trama, talvez encontre parciamente suas origens neste filme de modo mais superficial. Logo que Annabelle e Hannay chegam na casa deste, o telefone toca. Isto ocorre mais de uma vez, despertando a tensão de Annabelle e dirigindo o espectador ao terror inspirado pelo perigo que o telefonema pode representar (o telefone desempenharia tal função novamente, de modo mais essencial, em Disque M Para Matar).

Depois que Hannay e Annabelle decidem como irão dormir e encerram a conversa (ele no sofá, e ela na cama), a cena é cortada. A próxima imagem que enche a tela é a de uma janela aberta com uma cortina esvoaçante no meio da noite, a indicativa de que a fortaleza de Annabelle foi violada e que ela, portanto, corre perigo. Temos certeza de tal acontecimento quando, na próxima cena, Hannay é acordado por uma Annabelle atordoada que diz: Cuidado Hannay! Você será o próximo!, caindo em seu colo e revelando a faca que lhe foi enfiada nas costas. Quase que instantaneamente o telefone toca e sua imagem ocupa toda a tela, confirmando a importância deste elemento e o temor de Annabelle nas cenas anteriores. A tensão e a confusão de um homem comum que foi a um teatro de variedades e, em poucas horas, se meteu em uma trama de espionagem internacional! Hannay não atende o telefone, mas olha pela janela e vislumbra um homem na cabine de telefone enquanto o outro a vigia. Um flashback de Annabelle é introduzido na mesma cena, relembrando suas revelações do jantar: Isto que lhe faz rir agora, é verdadeiro. Estes homens não vão se deter diante de nada. A câmera exibe a mão de Annabelle, caída, morta, segurando fortemente um papel, que nosso herói hitchcockiano descobre ser o mapa da Escócia, com um local específico circulado. A imagem enevoante de Annabelle e sua voz ressoam: Há um homem na Escócia a quem eu devo visitar se é que algo possa ser feito. A polícia não acreditará em mim mais do que você. Estou lhe dizendo, estes homens agem rápido. E a palavra rápido é repetida, ressaltando e adjetivando como deveria ser a atitude de Hannay diante das circunstâncias. Qual seu próximo passo? Ir até a Escócia, é claro!

Mas antes de partir, somos brindados com mais uma manifestação do humor do Mestre do Suspense, como se para aliviarmo-nos da tensão sofrida na inesperada cena da morte de Annabelle e prepararmo-nos para a o desenrolar da conspiração hitchcockiana. Hannay, preocupado em deixar seu apartamento, encontra o leiteiro e pede-lhe ajuda. Confidencia a ele que está envolvido em uma trama de espionagem com uma mulher assassinada em seu apartamento, ao que o leiteiro toma como uma boa gozação. Hannay então conta que "na verdade", ele veio "fazer uma visita" à uma mulher casada no primeiro andar, e que os dois rapazes que ele estavam do outro lado da rua, razão de seu temor em deixar o prédio, eram o marido e o irmão de tal mulher. Por que você não disse logo? Perguntou o leiteiro. Hannay troca de roupas com este e finalmente parte.

Já em sua viagem de trem, ele descobre que seu nome é procurado pelo assassinato de Annabelle. Policiais entram no trem. Hannay se refugia em uma cabine e beija inesperadamente uma loira, a quem confidencia sua identidade acreditando que o ajudará. Mas em Madeleine Carroll não há resquício de Eva Marie Saint! E logo que os policiais entram na cabine pedindo informações, Hannay é denunciado e pula do trem em movimento!

Nas próximas seqüências, ele encontrará abrigo em uma casa no campo e fugirá dos policiais, encontrando supostamente a casa que procurava. Nela, se torna convidado de uma reunião do dono, o Professor Jordan, anfitrião a quem Annabelle certamente procurava, que lhe recebe com um sombrio sorriso antipático. Discutindo sobre o seu envolvimento na trama, Hannay lhe confidencia que o chefe dos homens que o seguiram anteriormente não tinha uma parte do dedo mindinho... exatamente a parte que falta no dedo mindinho de seu anfitrião! Uma excelente ironia hitchcockiana que deixa nosso herói encurralado na sala de seu maior inimigo!

Fugindo novamente da polícia, Hannay é confundido como político e convidado a dar discurso. Aqui, outro ponto brilhante na ironia do homem inocente sendo perseguido, temática recorrente na obra de Hitchcock e evidenciada nesta fala de Hannay: "Eu sei como é sentir-se solitário e indefeso e ter todo o mundo contra ti!" Um sucesso com a platéia, mas não com os policiais que o encontram logo ao final do discurso! Não apenas os policiais mas também Pamela, a loira denunciante do trem, que também terá de prestar depoimento à polícia. A "polícia", no entanto, nada mais é que o temido espião/professor Jordan... logo que Hannay descobre isto, e é algemado à Pamela, aproveita a aparição do rebanho de ovelhas que impossibilitam o carro da "polícia" de prosseguir e foge!

Hannay e Pamela algemados juntos, um dos pontos emblemáticos do filme. Hitchcock deixou os dois atores juntos, algemados, logo que foram apresentados um ao outro para que pudessem se conhecer melhor. Sua tática funcionou, já que Donat e Carroll apresentam uma química inquestionável na tela. Carroll como Pamela demonstra-se incrivelmente teimosa em não acreditar na inocência de nosso herói, tentando pedir socorro para libertar-se do suposto assassino até quando ambos, já instalados em um quarto de hotel, fingem ser casados. Passam a noite juntos, ainda algemados. Talvez o momento mais sensual do filme aconteça neste momento, quando Pamela tira suas meias e a tela é preenchida com a visão de suas pernas nuas, uma delas encostada na mão algemada de Hannay. Durante o sono deste, Pamela consegue se livrar das algemas, mas ao sair do quarto identifica os dois homens que os levavam à "polícia" no andar abaixo, ao telefone. Ouvindo sua conversa, ela finalmente tem a prova da inocência de Hannay! Quando este acorda, ela lhe conta: alguém envolvido na trama estará no London Palladium!

Pamela vai à polícia e procura ajuda em vão enquanto Hannay chega ao Palladium. Os policiais a seguem até o local: a prisão de Hannay já é certa! O que haveria no Palladium, afinal? De repente, uma música começa. Hannay percebe que é a mesma música que assobiou em momentos anteriores no filme. E no palco adentra... o Sr. Memória! Ao localizar o professor Jordan pelo binóculo em um camarote, ele finalmente descobre: o Sr. Memória era quem sabia o segredo! Somos transportados simbolicamente ao início do filme na atmosfera fascinante desta cena final. Hannay corre até o meio da platéia e berra: O que são os 39 degraus? Responda-me!

E o Sr. Memória diz: Os 39 degraus é uma organização de espiões colhendo informações em favor dos governos estrangeiros... até ser acertado por um tiro disparado pelo Professor Jordan! Na cena final, a absolvição de Hannay, que tem a polícia ouvindo diretamente do Sr. Memória o tão importante segredo - uma fórmula matemática a respeito de um combustível que permitirá às máquinas funcionarem sem fazer barulho. E a câmera aproxima-se da mão algemada de Hannay encontrando-se com a mão de Pamela... finalmente separadas pela força e agora unidas apenas pela vontade!

Nesta obra crucial para a carreira de Hitchcock - ela que lhe traria fama em solo norte-americano -, concebida há mais de 70 anos, não há espaço para defeitos. Seus menos de 90 minutos são preenchidos com reviravoltas fantásticas num roteiro meticulosamente elaborado e sua trama prenuncia as temáticas de futuros filmes do Mestre do Suspense, em especial, Intriga Internacional. Talvez o único deslize de Hitchcock tenha sido sua aparição marca-registrada jogando lixo no chão. No futuro, ele se empenharia em cameos mais politicamente corretos!



Shame on you, Hitch!