quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Sorriso de Cabíria

Julguei-me afortunado demais! Que delirante piada! Pobre de mim e de minha santa ignorância! É por conta desses sentimentos repentinos de letargia existencial e comodidade que adquirimos quando não há algo de significante para nos ferir a alma. E que aqui seja perdoada minha ultrasensibilidade casimira-di-abriana. Veja, também conservo saudades inestimáveis da "aurora da minha vida", afinal, foi nela o único momento em que permitiste-me a felicidade, lembras? Desde então vivo das migalhas da memória, conservando as fotos, vídeos e músicas que me permitam a continuar inspirando e expirando e constatar esta loucura hilariante: já fui feliz! Que delírio diabólico! Mais débil ainda é imaginar quantas tentativas obviamente frustradas de alcançar tal felicidade novamente! Por todos os santos, que besta fui todos estes anos! Que delirante besta idealista! Que vergonha imaginar que, em algum momento, eu piamente acreditei poder ser tão feliz quanto na infância! Envergonha-me até em pensamento cogitar tal possibilidade! Possibilidade esta tão vazia quanto o seu coração, afinal, não foi tu quem me impedistes de ser feliz enquanto tive chances? E eu, tão consciente, tão estupidamente consciente de meus nobres valores acreditei que tu nada tinhas a ver com minha óbvia infelicidade, que se ela existia era puramente por minha fraqueza e culpa exclusivas. Nesta minha tese tão intelectual, no entanto, fugiu-me acrescentar que toda a repressão da suposta felicidade que eu tão bestamente acreditei poder alcançar um dia, tinha uma única e clara razão: você. E que tu digas agora que é fácil, é óbvio culpar-te, é o mais simples, é o mais cômodo. Bom, neste caso não é. Foi necessário que tu, por finalmente, triunfalmente destruísse-me, para que me desse conta das vãs tentativas de nobreza de espírito que tive em tentar isentar-te de toda a culpa. Poderias negar agora que tentei amar-te mesmo quando tu fazias escárnio dos meus fracassos em me conectar com o que eu risivelmente, com os olhos a brilhar, denominava "humanidade"? Dizem que se ensina com ações e não com palavras. Agradeço então por ter me passado corretamente a lição prática de que o mundo é uma pocilga com gente que só faz sofrer. Tivesse aprendido contigo desde cedo tal valiosa lição, com prazer evitaria o contato com todos aqueles que, em um momento ou outro, declarei ao mundo conhecer como "amigos". E tu rias de tais "amigos"! Veja só como estavas certa! Para eles fugia de tuas garras, tão infantilmente indefeso que não notava as garras dos mesmos! Acabava-me ainda mais abatido por neles ter tão fielmente acreditado, enquanto em ti nunca acreditei. Nunca acreditei? Talvez sim, nos tempos mais pacientes em que quase hipnoticamente tentei julgar sua pura maldade como superproteção. Mas maldade é apenas maldade, não? Seja ela quando eu persistentemente forçava-me, quase tombando nas minhas próprias trevas, a olhar o céu e contemplar as tais coisas que embelezavam o mundo, mas tu não deixavas nem um lampejo de "alegria" triunfar. Ou quando eu, tão inocentemente perdoava comigo mesmo a tua última tentativa de quebrar minha força vital e tu retornavas, mais forte ainda, mais determinada à minha inevitável destruição. Deve ser de uma satânica felicidade pra ti, quando retorce mais e mais o que sobra de minha alma, o proibido mas delicioso pensamento de magoar a quem tu comprastes, não é mesmo? Talvez, na sua mente doentia, isso dê legitimidade à escravidão que tu me submetestes por completo. Mas não perdemos mais tempo com suposições, lamentações e pedidos de oração. Entenda, só escrevo isto pois quero te dar os meus sinceros parabéns. São poucos os que realizam o que determinam na vida e tu, minha cara, realizou um feito colossal. Marcou-me pra vida toda. Só queria que soubesse que, no final, tu venceu. Teu triunfo é a minha miséria, mas isto esteve claro desde sempre. E não preocupe-se em impedir que minha antiga consciência humanística retorne, matando por fim tua mais perfeita criação: o monstro de cólera. Tantos outros me ensinaram quando tiravam-me pedaços de alma, mas foi tu quem por fim me convenceu. Não existe mais sorriso de Cabíria para mim.

sábado, 18 de outubro de 2008

100 Anos Dela

"Sempre tive vontade de vencer. Podia sentir isso ao assar cookies. Tinham de ser os melhores cookies que alguém já assou." - Bette Davis

Terminada a projeção, o palco se iluminava e ela, pé ante pé, aproximava-se da platéia extasiada. "What a dump!", finalmente disse, depois de colocar o cigarro em cima da mesa improvisada, para os aplausos frenéticos. "What a dump!" era a célebre frase de um dos seus filmes, discutida mais tarde por Elizabeth Taylor em outra célebre cena de Quem Tem Medo de Virginia Woolf?. Com esta frase, era dado início à parte "In Person" do Bette Davis In Person and On Film, espetáculo que percorreu os Estados Unidos, Europa e Austrália nos anos 70, encantando espectadores de cinema com a presença de uma estrela única do firmamento hollywoodiano: Bette Davis.

Ruth Elizabeth Davis começou sua carreira no cinema com uma definitiva dificuldade: sua falta total de sex appeal. Embora seus belíssimos olhos azuis tenham sido imortalizados no hit oitentista de Kim Carnes, em tempos de Jean Harlow, Bette Davis não era nenhum ideal de beleza. Contratada pela Universal, ela estreou com o insosso A Irmã Má, em 1931, contracenando ao lado de Humphrey Bogart. Resultado: ambos foram despedidos do estúdio. "Havia uma lenda naquela época de que, se você fosse despedido da Universal, você realmente iria chegar em algum lugar", ela diria anos depois. Chegou então o contrato com a Warner Bros. Mas ainda fazendo um punhado de porcarias, Bette solicitou que a Warner a permitisse fazer um filme para a RKO. O resultado foi o primeiro grande triunfo de sua fantástica carreira: Escravos do Desejo (ou Servidão Humana) foi lançado em 1934 em meio a controvérsias. Na fita, Bette Davis interpretava Mildred Rogers, uma garçonete que leva o personagem de Leslie Howard à ruína. A primeira grande "bitch" do cinema! Bette esperava ser indicada ao Oscar pela sua performance, mas quando sua indicação oficial foi negada, houve uma tentativa de colocá-la como "write-in" (os jurados poderiam votar em quem quisessem, estando o ator/atriz indicado ou não). De todo modo, Bette não venceu, mas ganhou o prêmio de Melhor Atriz em 1936 por Perigosa, um prêmio de "consolação" por Escravos. Sua fama estava firmada, mas o alcance ao estrelato absoluto - e ao topo dos box-offices - viria com Jezebel, filme de 1938 que lhe renderia seu segundo Oscar. Dirigido por William Wyler, Bette contracena ao lado de Henry Fonda como uma jovem e ousada sulista. A partir de 1940, Bette Davis teria cinco indicações seguidas ao Oscar de Melhor Atriz; no ano de E o Vento Levou e O Mágico de Oz, ela foi indicada ao prêmio pelo papel de Judith, uma socialite que luta pela felicidade sabendo que tem apenas meses de vida no clássico Vitória Amarga (1939); em 1941, a indicação seria por A Carta, outra parceria com William Wyler; em 1942, seria a vez de Pérfida, em mais uma colaboração com William Wyler, e em 1943 por Charlotte, no seu então maior sucesso de bilheteria, A Estranha Passageira. Mais uma indicação estaria a caminho em 1945 pelo filme Vaidosa, em que Bette contracenou ao lado de Claude Rains.

A carreira de Davis sofreria um declínio no final dos anos 40, com filmes que fracassaram no box office ou foram detonados pelos críticos como Uma Vida Roubada, Que o Céu a Condene e Beyond The Forest, lançado no Brasil sob o curioso título A Filha de Satanás. Depois deste último, em 1949, Bette Davis saiu da Warner Bros. Muitos apostavam no fim da carreira da atriz, mas eles teriam de "apertar os cintos" para a tempestade que estava por vir!

Em 1950, Bette Davis viveu a atriz de teatro Margo Channing, no altamente celebrado clássico A Malvada, em o que muitos consideram a performance de sua carreira. Com um roteiro impressionante e um elenco impecável, o filme foi indicado a 14 Oscars, vencendo 6, incluindo Melhor Filme. Bette, no entanto, perdeu o prêmio de Melhor Atriz para Judy Holliday, talvez um dos maiores roubos da história da Academia.

Apesar de seu retorno espetacular com Malvada, Bette Davis não alcançaria novamente o sucesso no cinema como o teve nos anos 40. Ela estrelaria ainda em filmes como Lágrimas Amargas (1952), pelo qual recebeu mais uma indicação ao Oscar, A Rainha Tirana (1955), onde retornaria ao papel da Rainha Elizabeth - o qual havia interpretado 16 anos antes em Meu Reino Por um Amor (1939) - e O Estranho Caso do Conde (1959).

Em 61, Bette se reúne ao lendário diretor Frank Capra (A Felicidade Não Se Compra, A Mulher Faz o Homem) no último filme deste: Dama Por Um Dia. Mas seria em 1962 que ela encontraria mais um grande triunfo no cinema, quando o diretor Robert Aldrich a uniu com sua antiga rival Joan Crawford, no filme de suspense-horror O Que Terá Acontecido a Baby Jane?, onde ela interpretou a grotesca personagem do título, uma velha que acredita ainda poder reviver o sucesso musical de sua infância, enquanto amedronta e tortura sua irmã em cadeiras de rodas, interpretada por Joan. Como conta Bette Davis em seu livro This 'N' That, Joan Crawford usou de sua influência na Academia para fazer com que ela não levasse a estatueta - seria seu 3º Oscar. Joan teria ligado para todas as indicadas e se comprometido a receber o prêmio por elas caso não pudessem atender à cerimônia. Naquele ano, Anne Bancroft ganhou e Joan aceitou o prêmio pela atriz. "Eu queria ser a primeira atriz a ganhar 3 Oscars, mas Katharine Hepburn conseguiu antes. Na verdade ela não conseguiu. A Sra. Hepburn só ganhou metade do 3º Oscar. Se tivessem me dado meio Oscar, eu jogaria de volta na cara deles," disse Bette sobre o prêmio de Melhor Atriz que Hepburn dividiu com Streisand.

Com os custos de Baby Jane sendo cobertos logo na sua semana de estréia, Robert Aldrich já visualizava outro veículo para suas duas grandes estrelas brilharem novamente. Com a Maldade na Alma, de 64, foi este filme. Na verdade, era para ter sido. Crawford ficou doente durante as filmagens e teve de ser substituída por Olivia de Havilland, a eterna Melanie de E o Vento Levou. Com a Maldade na Alma rendeu 7 indicações ao Oscar e ajudou a revitalizar a carreira de Bette no cinema, que iria protagonizar filmes como Nas Garras do Ódio, Alguém Morreu em Meu Lugar e O Aniversário nos anos 60, e Madame Sin, Morte Sobre o Nilo e Perigo na Montanha Enfeitiçada nos anos 70.

Em 83, a atriz foi diagnosticada com câncer de mama e sofreu um derrame. Os médicos apostavam que ela nunca trabalharia novamente. "Vocês não conhecem Bette Davis!", disse um amigo seu aos médicos. Seus anos finais foram de homenagens e, é claro, muito trabalho. Ela estrelaria ainda o filme indicado ao Oscar, As Baleias de Agosto, ao lado de outras duas lendas do cinema: Lillian Gish e Vincent Price. Lançaria o livro de memórias This 'N' That contando sua história de recuperação após seu derrame de 83, entre outros fatos curiosos de sua vida, incluindo uma carta à sua filha que, durante a recuperação da mãe, lançou um livro sensacionalista à lá Christina Crawford falando sobre os supostos abusos de personalidade da atriz. Bette disse que, diferente do seu derrame, desta traição ela nunca se recuperaria.

Em 1989, Davis descobriu que seu câncer havia retornado. Ela nos deixaria no dia 6 de outubro daquele ano. Na sua sepultura, uma frase que o diretor Joseph Mankiewicz havia dito a ela nos anos 50 e que ela, em várias entrevistas, orgulhosamente citou: "Ela fez da forma difícil/She did it the hard way." Seu legado não nos permite mentir: valeu à pena, Bette!

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Morre Brick Pollitt

Paul Newman morreu, pensei. Semaninhas negras estas. De adeus do Dean, Rock Hudson, Miss Bette Davis. Fellini no 31. Sad, sad, sad. E minha Hollywood dos sonhos, glamour do preto-e-branco e Technicolor, de repente... perdida. Morreu Paul Newman. Como morreram tantos. Brando, Kerr, Monroe, Crawford, Garbo, Dietrich, Chaplin, Bogart, Stewart, Grant, Karloff, Astaire, Olivier, Gene, Grace, Audrey, Katharine, Garland. Tantos. E Paul Newman morre. Paul Newman da Cor do Dinheiro, do golpe de mestre, o cool hand luke, o Butch Cassidy, o do Inferno na Torre. Todos os Newmans que não conheci. Morreu Brick Pollitt, pensei. Sim, morreu Brick Pollitt. Brick Pollitt! There must be some mistake. O Pollitt daqueles 108 minutos não morre... ele bebe e luta, briga, chora porque can't stand a falsidade. Como poderia ele morrer? Mas assim o fez. Não em acidente como Dean ou Grace, nem de causas naturais como Katharine. Mas do maldito câncer, que nos levou Davis e Audrey. Sim, só o câncer poderia abater Brick Pollitt e nos privar de sua alma dean-cliftiana. Quantas vezes Pollitt esteve no meu televisor! E por quantos anos! Foi um dos primeiros da golden age que conheci. Lembro da mão trêmula depositando o disquinho na bandeja daquele tijolo velho de DVD, a ânsia pra ver a tão-celebrada peça de Tennesse Williams que levou 6 indicações ao Oscar de 59. E o esforço! A mesada guardada, às moedas. A pesquisa longa e extensa em torno dos clássicos hollywoodianos pra dizer "sim, é este que quero!". Sim, Pollitt, era a ti que queria ver! Por certas razões e muitas outras. Afinal, Liz Taylor é uma diva. E o filme começava. Quantas vezes vi e revi aquela cena inicial, você, coitado, bêbado, frustrado, completamente desgraçado pela vida, tentando ser o atleta que já foi um dia ao som do "Go, go Pollitt! Brick Pollitt" que obviamente só poderia ser real na sua cabeça embriagada. E depois você, já engessado (entendemos, você se machucou ao pular os obstáculos na noite anterior), deitado e bebendo pra variar, pensando e doendo por dentro e esperando Elizabeth Taylor entrar em cena. E quando ela entra, com toda sua divindade, a tela se transforma em ringue para os teus olhos azuis e os olhos violeta dela. Que bela luta! Até quando vocês dois resolvem se pegar, é claro, não do modo que Maggie-Liz Taylor deseja. Não estou vivendo com você, apenas ocupamos a mesma jaula! berrava Liz Taylor. Depois chegava Big Daddy, o seu pai que foi o xerife de Vidas Amargas, em meio à pompa organizada pela mulher daquele seu irmão filho-da-mãe, que fez Nasce Uma Estrela e aquele filme com a Dietrich e o Jimmy Stewart que vi outro dia. Belo canalha ele, saquei de cara! Toda a festa porque Big Daddy voltou dos exames médicos que fez mas, para a decepção do casal-desgraça que levou seus no-neck-monsters/filhos para recepcionar Big Daddy, os exames confirmaram que o velho irá viver por muitos anos. Salve Big Daddy! Mas Liz Taylor que sempre foi pobre a vida inteira se preocupa com o teu irmão e sua esposinha, afinal, os dois podem ganhar a confiança da Big Momma e conseguir que o império dirigido por Big Daddy seja, após a morte deste, unicamente deles e dos no-neck-monsters. Você, como boa alma que é, está pouco se lixando pro Big Daddy e pro dinheiro dele. Falam até em te internar na clínica pra alcóolatras Rainbow Hill e você, bebendo, faz um brinde to Rainbow Hill! Logo vem Big Momma se intrometer na privacidade da suíte-sem-amor sua e de Liz Taylor e dar palpites inxeridos sobre sua vida de casado, o que causa um oportuno estranhamento em mim, não pelos palpites que parecem típicos da figura ingênua de Big Momma, mas quando penso nos dois anos que levei pra reconhecê-la na figura funesta de Mrs. Danvers no hitchcockiano Rebecca. De todo modo, agora Liz Taylor quer falar e você quer dar nela uma muletada. Ela quer falar sobre Skipper porque it's got to be told! Mas não, ela não vai falar, simplesmente não pode! Big Daddy exige respostas... afinal, por que tu bebes tanto? Mandasity tu dizes. Sim, a falsidade, que não foi uma nem outra vez... e eis que Liz Taylor entra de novo e explicas o que tu, talvez, tão magoado por razões explícitas e implícitas de Tennessse Williams, não quisestes ouvir antes. Ora, Brick, Skipper não havia o traído então. Morreu pedindo por ti, por tua ajuda... tu o ignorastes, Brick! E agora restavam as lágrimas, e o som daquele telefone tocando, Skipper, que tu não atendestes... Entende agora por que eu bebo? O nojo da falsidade na verdade é o nojo de mim mesmo! E quando bebo não ouço mais o som daquele telefone tocando! E na agonia dos teus olhos azuis, Brick Pollitt, naquele momento, tornaste-te um Deus da sétima arte. Sim Brick, ali entendi perfeitamente o que sentias e até o que sentias e não dizias. Almas partilhando uma inevitável dor existencial! Quão envaidecido fiquei ao me identificar em ti, personagem tennesseewilliamno! Tu passou a ser freqüente nas minhas sessões repeteco das sextas-feiras colegiais. Certas vezes o sono me abatia, te perdia por momentos em meio aos meus devaneios pré-meia-noite, mas ao acordar tu estavas lá, a dor de sempre tão conhecida, a berrar worthless worthless quebrando as porcarias que o Big Daddy achou que podiam comprar teu amor. Worthless! Mas no gran finale - não da película, mas de la vita - tiveste que morrer... e eu entendo, saco tudo sobre mortalidade, sei que também irei para aquelas bandas um dia, mas não falemos de tão desagradável noção. Tua grande alma não vai para debaixo da terra, e é tudo o que importa. Brick Pollitt, 20 e poucos, talvez 30, olhos azuis, confuso mas não covarde, um rebelde existencial da MGM de 58. Até que a terra nos engula também, nós, que somos tão desgraçados e tresloucados como você (by the name of love and not mandasity), estaremos respirando esta bela alma que plantaste no cinema hollywoodiano e, mais importante, em nossos espíritos. May you rest in peace, Pollitt!

sábado, 4 de outubro de 2008

Perda de Memória Recente

Acredito que devo um atrasado - porém merecido - agradecimento ao canal de TV à cabo Sony, por impedir que prosseguisse como pessoa estúpida e pedante ao exibir o documentário "Living With Michael Jackson", há 5 anos atrás. Lembro-me perfeitamente que estava na casa de uma tia e, antes de viajar, forcei-me a não esquecer de tal especial que, segundo os sites de fofoca em geral, era simplesmente "bombástico". Simbolicamente, esta era a casa da mesma tia cuja filha havia me apresentado ao astro quase dez anos antes.

Michael Jackson foi um dos meus maiores ídolos de infância. Era apaixonado por suas músicas, seus vídeos visionários, sua imagem mágica e misteriosa e seu carisma estelar. E era isto. Tinha uma profunda admiração pelo seu talento extraordinário, mas nada sabia de sua pessoa. Ademais, minha pré-adolescência coincidiu com uma era em que Jackson passou a ser tomado como um personagem-piada do inconsciente popular e eu, em meu doentio hedonismo, achava graça de sua difamação pública. Talvez tenha sido uma rara retomada de humildade que, em minha imbecilidade juvenil, me impeliu a assistir ao documentário sem intenções maliciosas.

Se no espírito humano possa ocorrer o que os religiosos definem como "conversão", eu experienciei a mudança de minha vida ao término daquele documentário. Quando Michael Jackson disse ao "jornalista" Martin Bashir as seguintes palavras "Na sua mente, você nunca esteve onde eu estive", tive a certeza de ter conhecido, em 90 minutos, um homem de uma humanidade que não acreditava que pudesse existir. De uma humanidade que, talvez, eu já tivesse desistido de acreditar. Fui dormir entorpecido, em meio a sonhos com aquele Michael da minha infância, fugindo dos fotógrafos em "Moonwalker" no SBT, com sua cool roupa preta de Bad, mesclado à estátua da liberdade de Black Or White em ruas escuras Beat Itanas e, latejante, aquele Michael recém-descoberto, o Michael With a Child's Heart, o Michael que, daquele momento em diante, tornou-se inevitalmente meu herói.

Poucos meses seriam até que o pesadelo maior de Michael e de seus fãs tivesse início. Jackson foi preso, acusado de abuso sexual de um menor de 13 anos, para o deleite da imprensa mundial. Minha dor pessoal por Michael pôde ser compartilhada em outra experiência transformadora de minha vida - a convivência com os fãs ou, como prefiro, os supporters de Michael Jackson, aquelas pessoas que partilhavam dos mesmos valores que ele e que amavam a pessoa de Michael por personificar tais valores. Árduos tempos aqueles, de indignação, revolta, nervosismo, sofrimento e, em especial para mim, de amadurecimento. Foi Michael minha identificação maior nos definidores anos da adolescência. Tenho plena consciência de que devo minha formação como pessoa à integridade e força sobre-humanas de Michael Jackson, pois foi ele quem estampou na minha TV, todos os dias daquele julgamento, ao chegar à Corte fazendo um "V" de vitória, que tudo o que eu havia aprendido com ele não eram apenas palavras bonitas. Não era um juvenil e ingênuo idealismo ou fanatismo, como muitos gostavam de julgar à época. Era de verdade!

Passada a absolvição, Michael tem mantido um low profile nos últimos três anos, fora dos holofotes, a não ser em eventuais premiações (MTV Japan, WMA) e alguns mais recentes ensaios para revistas. Nada mais do que merecido, e qualquer ser que se auto-declare minimamente fã de Michael Jackson desejaria a ele, depois do inferno pessoal que viveu, nada menos do que a felicidade, esteja ela onde ele encontrar. Só que seria mais conveniente se ele encontrasse tal felicidade voltando a fazer álbuns e turnês milionárias, não?

Acontece que, depois de três anos de uma experiência transformadora para mim, me pergunto onde diabos foram parar os verdadeiros supporters de Michael Jackson. Teriam todos eles ido cuidar de suas vidas, como fez Ms. Tenda? Só deste modo poderia ser explicado o desfile de cretinices que tenho lido, cada vez mais, de auto-declarados fãs de Jackson.

Comecemos: Michael Jackson está obviamente interessado em retomar sua carreira musical, o que deveria ser motivo de empolgação aos tais fãs, já que, sofrendo o que sofreu, demonstra ainda uma surpreendente força de vontade para voltar a interagir com o público (coloque-se no lugar dele e imagine se você teria tal força). Vale lembrar que ele já ressaltou, em entrevista à Oprah, que nos exaltados tempos de Thriller não era feliz. Em todo caso, isso pouco importa a estes tais fãs. Mais do que demonstrado interesse, Jackson está gravando já há certo tempo e, de mês em mês, pipocam declarações de seus colaboradores. Neste caso, a controvérsia (leia-se santa falta do que fazer) entre os “alleged fans” é de que Michael escolheu os colaboradores errados (tolinho ele!) e por isto, conclusivamente, o disco não será bom. Percebe-se claramente que os tais fãs tiveram acesso exclusivo às novas gravações para um julgamento tão apurado ou então, sabe-se lá, desenvolveram algum inovador sistema de musicopatia onde eles recebem, em suas maravilhosas cabecinhas, todas as novas idéias musicais de Mr. Jackson para o álbum! Santa mediocridade acefálica!

Talvez um dos comentários mais patéticos que tive o desprazer de ler é de que Michael Jackson é um prostituto pelo re-lançamento de Thriller deste ano. Curioso, cobram novo álbum e cobram com qualidade, mas não podem esperar o criador completar a criação (fosse para lançar o que desse na telha, já tinha saído... ou alguém acha que Mr. Jackson está a brincar de fazer música no que é provavelmente o álbum mais esperado de sua carreira?)! Enquanto isso, Thriller 25 foi simplesmente a melhor investida na imagem de Michael em anos. O resultado, todos sabemos. 25 anos depois, é um dos dez discos mais vendidos de 2008 com quase 3 milhões de cópias. Foi um excelente projeto de re-introdução de Michael Jackson no mercado fonográfico, embora não tenha agradado boa parte dos senhores de engenho/fãs de Michael, seja por não ter sido o "novo álbum" ou por, em sua demência abismadora, acreditarem que seu lançamento atrasou o disco novo (?) (Traga-me ó Ceus o disco novo de Jackson para minha ínfima existência! Sem ele não vivo, não respiro, só sei falar mal de Invincible...); ou ainda por Michael ter usado remixes de algumas faixas de Thriller como material extra para o disco, cometendo o sacrilégio maior: blasfemar a santa hóstia! Ó Michael, por quê nos tortura dessa forma? A fazer o que bem queres, da forma que bem entendes, na obra que tu mesmo criastes...

Do modo que as lamentações fóbicas foram feitas para Thriller 25, se repetem para a nova coletânea King Of Pop, coleção esta que tem apenas um singelo apoio da Som Livre com direito a comerciais na Rede Globo. É evidente: fãs de Michael Jackson não querem ver seu ídolo vendendo discos!

O que me surpreende mais, muito além da trivialidade dos desocupados que se põem a malhar os lançamentos, é a desumanidade daqueles que acreditam piamente que Michael lhes deve alguma coisa, e por não lançar tal disco novo, põem-se a fazer beicinho e chamá-lo de vagabundo. Não acrescentam nada à comunidade e acreditam ter direito à tal "opinião". Certamente esse pessoal não trabalhou metade do que eu e muitos outros trabalharam no passado para trazer material de qualidade aos fãs, nem sofreram o que nós sofremos com o julgamento... no entanto, são eles os primeiros a exigirem que Jackson seja um subordinado às suas vontades, como se a condição de garantisse o direito de decisão no que ídolo deve ou não fazer e ainda como fazer (Michael Jackson Fast Food, aguardamos o seu pedido!). Esquecem facilmente que, há três anos atrás, Michael poderia simplesmente ter perdido sua vida e liberdade, liberdade esta que ele usa hoje para gravar as músicas que em breve serão escutadas e apreciadas pelos mentecaptos que já as condenam! Afinal, somente desalmados poderiam classificar Michael Jackson, escravizado pelo sucesso desde a infância, de vagabundo.

O que esses seres doentios, parasitas do sucesso de Michael Jackson, acreditam que ele ainda tem a provar com tal disco novo (para satisfazer suas "vidas" pífias, é claro) está além da minha imaginação. Como mito, seu posto já está assegurado há 25 anos. Como performer, recebeu de Astaire as seguintes palavras: "é o dançarino do século!". Como músico, criou algumas das maiores canções pop da história. Como pessoa... só os supporters poderiam entender quando digo que nem a sacrossanta Billie Jean chega aos pés do homem que, humilhado por ousar viver diferente, disse a Corey Feldman: Ninguém nunca vai me impedir de ser quem eu sou. É lamentável que, passado três anos, os fãs que dizem o amar tenham esquecido, ou sequer aprendido, o que aquilo verdadeiramente significava...